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Voar é um desejo que começa em criança!

domingo, 11 de agosto de 2013

Especial de Domingo

Santos Dumont, nosso admirável Pai da Aviação, sempre guiou a si mesmo na conquista do conhecimento. No texto de Alexandre Medeiros veremos como ele trilhou os primeiros passos de seus estudos técnicos. O presente artigo está baseado em parte do primeiro capítulo do livro Santos Dumont e a Física do Cotidiano, do mesmo autor (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2006). 
Boa leitura. 
Bom domingo. 
Feliz Dia dos Pais!! 

Santos Dumont e seu professor de física
O próprio Santos Dumont relata em suas memórias que o seu pai, um engenheiro que havia estudado na França, na École Centrale des Art et Métiers, conhecendo a sua paixão pelas questões técnicas e científicas, recomendou que ele fosse para Paris onde deveria procurar um especialista em Física, Química, mecânica e eletricidade. Segundo relata Santos Dumont, o seu pai aconselhou-o ainda a estudar aquelas matérias e ter sempre em mente que o futuro do mundo estava na mecânica. Analisando este trecho das memórias de Santos Dumont e tendo em mente que a mecânica e a eletricidade são partes integrantes do que denominamos de Física, somos tentados a achar o seu discurso um tanto redundante ou até mesmo equivocado. Entretanto, o verdadeiro significado presente nas palavras do velho Henrique Dumont deve ser interpretado como uma sugestão para que o jovem Alberto concentrasse os seus esforços nas mais recentes aplicações da mecânica e da eletricidade, ou seja, nos campos da engenharia mecânica e da nascente engenharia elétrica. Além disso, o velho Henrique, conhecendo bem o espírito indômito porém introvertido de seu filho, que dificilmente se adequaria a qualquer rigidez curricular, reforçou a recomendação dada ainda na primeira viagem a Paris para que ele procurasse um bom professor particular como alternativa ao tradicional ensino formal universitário. Santos Dumont iniciou os seus estudos mais avançados em Paris na primavera de 1892 e logo em seguida, já em agosto daquele mesmo ano, receberia a terrível notícia do falecimento de seu pai no Brasil. Após a morte de Henrique Dumont, Alberto frequentou livremente, sem qualquer compromisso formal, durante cinco anos, de 1892 a 1897, as aulas que lhe interessavam nos cursos de engenharia na Sorbonne e também no College de France. Este é um detalhe muito importante de sua formação intelectual, destacado por Gérard Hartmann, mas praticamente ignorado por muitos dos seus biógrafos. No ano seguinte, de 1893, com 21 anos de idade, Santos Dumont passou um tempo na Inglaterra, durante o qual frequentou, novamente como um aluno ouvinte, provavelmente aulas de navegação no Merchant Venturers’ Technical College da cidade de Bristol , onde alguns de seus primos eram estudantes regulares. Ele se interessou por aquela instituição, que daria origem à Universidade de Bristol, também provavelmente devido à sua forte reputação na área da engenharia, especialmente na área de navegação. Não existem, contudo, registros escritos oficiais daquele seu período naquela instituição, pois um bombardeio ocorrido na Segunda Guerra Mundial destruiu uma parte relevante dos arquivos da instituição. Como destaca Henrique Lins Barros, temos, entretanto, o relato de um colega seu daquela época, o brasileiro Agenor Barbosa. Segundo ele, Santos Dumont era um aluno pouco aplicado, ou melhor, nada estudioso para as ‘teorias’, mas de admirável talento prático e mecânico e, desde aí, revelando-se, em tudo, um gênio inventivo.
O seu guia principal nos seus estudos acadêmicos não foi, entretanto, nenhum dos professores a cujas aulas tenha ele eventualmente assistido na Sorbonne, no College de France e nem mesmo no Merchant Venturers’ Technical College de Bristol. Naqueles locais, Santos Dumont nunca seguiu currículos regulares, nem jamais estudou de um modo mais formal. Na verdade, o grande orientador dos seus estudos foi ele mesmo, com a sua liberdade indômita e o seu desejo incontido de guiar o próprio destino, de buscar os seus próprios caminhos. Durante aqueles cinco anos formativos, ele não apenas estudou, mas também fez algumas viagens, não apenas à Inglaterra. Tudo isso fazia parte de sua auto-educação. Há relatos na literatura, por exemplo, sua escalada ao Monte Branco, o ponto mais alto da Europa e que muito o teria deslumbrado. O seu amor pelas alturas ultrapassava agora em muito a simples subida da torre Eiffel realizada ainda em sua primeira viagem a Paris. Naqueles seus anos de estudos, ele não ia muito a festas e bebia pouco, mas já começava a frequentar a animada noite parisiense, embora sem o mesmo destaque em relação ao que obteria anos depois, após os seus arriscados vôos de balão. Para relaxar, ele recorria também aos novos carros adquiridos. Deixou de lado o seu Peugeot e comprou um novo e mais potente De Dion e também um triciclo Dion-Button com motor de dois tempos. Ele tinha mais automóveis que qualquer outra pessoa em Paris, mas aquelas suas caras engenhocas quebravam frequentemente. O lado bom dessa deficiência primitiva dos seus automóveis é que aquilo obrigava-o a tornar-se cada vez mais íntimo dos segredos da máquina a explosão.
Ele fez novamente outras tentativas de voar em um balão esférico com os demonstradores de feiras, mas todas elas sem o esperado sucesso, pois aqueles indivíduos exigiam-lhe quantias absurdas e exageravam nos perigos da aventura. Santos Dumont chegou a comentar em seus escritos que era como se eles quisessem guardar os segredos da aerostação apenas para si mesmos. Assim, entre algumas viagens, noitadas e passeios de automó- veis, ele seguia a sua vida de dedicação aos estudos em Paris naqueles anos de 1892 a 1897. Desde o início desse seu período formativo em Paris, Santos Dumont seguiu à risca o conselho de seu pai e conseguiu um bom professor particular, não propriamente para guiá-lo, mas sim para auxiliar nos seus estudos individuais. Ele conta que logo conseguiu como tutor um antigo professor universitário francês, de origem espanhola, chamado Garcia e que veio a lhe ensinar praticamente tudo o que sabia sobre a Ciência. O próprio Santos Dumont contanos, em seu livro O Que Eu Ví; O Que Nós Veremos, que estudou com o professor Garcia por muitos anos e que de fato não apenas estudou, mas que também viajou bastante naqueles anos formativos do seu conhecimento científico. Não se sabe ao certo quem era esse tal professor Garcia, onde ele havia lecionado nem mesmo qual era o seu primeiro nome. Tudo o que se sabe, de fato, a respeito deste misterioso personagem, é que ele parece ter sido realmente a única pessoa a ter lecionado determinados conteúdos de Física de forma regular a Santos Dumont, ainda que de um modo bastante informal e bem adequado à personalidade do seu abastado, inteligente e caprichoso aluno. Mas, afinal, como foram os tais estudos de Santos Dumont com esse tal professor Garcia, entre 1892 e 1897? Quase todas as suas biografias omitem este seu importante período formativo, justamente o período no qual Santos Dumont estudou uma série de coisas que lhe interessavam, dentre elas a Fí- sica. Como saber, portanto, como teria sido esta sua formação? Paul Hoffman descreve este período da vida de Santos Dumont como uma fase na qual ele teria mergulhado intensamente nos estudos, chegando a tornar-se um autêntico “rato de biblioteca”. Não sabemos até que ponto uma tal inferência é de fato verdadeira, mas ela parece bastante factível, apesar das diversões já assinaladas, se levarmos em conta os seus interesses muito claros nos conhecimentos que desejava adquirir. Não se deve, entretanto, inferir de uma tal afirmação que ele tenha seguido alguma coisa semelhante a um rígido programa de estudos traçado pelo tal professor Garcia, a quem ele parecia muito estimar. O verdadeiro programa de estudos de Santos Dumont foi estabelecido por ele mesmo, certamente com a ajuda de Garcia, mas jamais comandado por este.
Peter Wykeham, outro importante biógrafo, conjectura com muita sensatez que mercê das características muito peculiares da personalidade de Santos Dumont e dos seus interesses específicos de estudo, Garcia deve ter sido não propriamente um guia, mas sim um conselheiro seguro, alguém em que ele podia confiar e com quem podia tirar as suas dúvidas sobre os assuntos estudados. Ele, de início, deve ter tentado outros professores, como conjectura Wykeham, mas não deveria ser tarefa fácil para mestres aposentados enfrentar uma entrevista com um jovem estrangeiro pequenino e dono de si mesmo, plenamente consciente de suas possibilidades. Garcia parece ter sido um achado feliz, um mestre, possivelmente aposentado, de Ciências e engenharia e que teria tido uma atitude positiva em relação a Santos Dumont - sempre receoso do ridículo - e diante de quem Alberto não se sentia constrangido em revelar os seus anseios aeronáuticos. Garcia visitava-o, provavelmente, todos os dias e trazia consigo algumas sugestões interessantes das muitas opções de estudo em Paris, de cursos que valeriam a pena serem seguidos ou de palestras que mereceriam ser assistidas. Ele deveria auxiliar Santos Dumont, sobretudo, a ter uma atitude de avaliação crítica em face das muitas possibilidades de acesso ao conhecimento disponíveis naquela grande cidade. Garcia dava-lhe aulas particulares sobre conteúdos específicos, discutia com ele as coisas interessantes que houvesse visto em alguma palestra ou aula que tivesse presenciado recentemente em alguma Universidade, alguma questão interessante aparecida nos livros que ele lia com frequência e, além disso, tirava as suas dúvidas, quando necessário. O professor Garcia dava-lhe, sem dúvida, uma ajuda inestimável, mas não era jamais um verdadeiro guia. Ele não conduzia, verdadeiramente, o processo educativo de Santos Dumont; essa era uma tarefa que cabia ao próprio Dumont fazê-lo, sob a sua própria conta e risco. Não era, assim, um relacionamento propriamente entre um mestre e o seu discípulo. A influência exercida era útil, mas controlada pelo próprio Santos Dumont. O resultado prático era que apesar da sua educação ser ampla e entusiasticamente conduzida, ela era também caracterizada por uma certa superficialidade. Pode-se conjecturar que a sua educação científica poderia ter sido bem mais sólida, se não houvesse sido ele mesmo o próprio guia de todo o seu processo educativo; se não fosse ele mesmo que estivesse sempre no comando das direções a seguir. Mas isto seria praticamente impossível, pois Alberto aprendia sempre pelos seus próprios métodos de estudo. Com a fortuna que possuía e que não parava de crescer em face das boas aplicações que ele havia feito em ações na bolsa de valores, o admirável mesmo é que ele tenha de fato estudado! E a admiração maior é pelo fato dele ter perseverado em seu objetivo de construir a sua auto-educação.
Em seu tempo, ainda não existiam, obviamente, cursos de engenharia aeronáutica. Deste modo, ele jamais poderia ter se formado em um curso universitário desta natureza. E outros títulos seriam para ele não mais do que um simples ornamento dispensável. Também por isso, Santos Dumont optou, mais uma vez, pela sua liberdade, por não seguir nenhum curso universitário. Ele não se formou em engenharia aeronáutica, ele se fez a si próprio um engenheiro aeronáutico, um pioneiro autodidata que daria passos importantes para a inauguração de uma nova era nas conquistas tecnológicas aeronáuticas da humanidade. Mas, afinal, como podemos saber o que Santos Dumont aprendeu de Física e quanto esse conhecimento influenciou em sua trajetória seguinte de conquistas tecnológicas? Que conteúdos de Física eram esses não se sabe ao certo, mas uma análise cuidadosa dos trabalhos e das aventuras de Santos Dumont, assim como dos seus escritos sobre os mesmos, pode conduzir-nos a inferirmos os seus possíveis conhecimentos nesta área. Cremos que com um tal esforço analítico podemos desvendar muito do que, de fato, Santos Dumont estudou e aprendeu e que tipo de potencial interpretativo da Natureza um tal conhecimento lhe propiciou. Do mesmo modo, também, podemos reconhecer as possíveis deficiências e limitações deste seu conhecimento.
Além disso, em um tal percurso, podemos ser levados a analisar uma série de fenômenos do cotidiano à luz das leis da Física em situações diversas ensejadas por Santos Dumont e, desta forma, refletirmos, aprendermos e ensinarmos uma série de conteúdos interessantes e úteis na compreensão do universo que nos cerca. Este, entretanto, é um desafio que transcende a extensão deste presente artigo e que nos remete necessariamente para estudos mais específicos que contemplem um tal tema.

Texto: Alexandre Medeiros