Reproduzimos hoje uma antiga entrevista com o Brigadeiro Fortunato Câmara de Oliveira (1916-2004). Militar, gravurista e ilustrador brasileiro, foi o criador do Senta a Pua, símbolo do 1º Grupo de Aviação de Caça da Força Aérea Brasileira.
O texto, selecionado do Sentando a Pua!, foi publicado originalmente na Revista Aerovisão.
Boa leitura, bom domingo!Quando e como foi o seu despertar para a aviação militar?
Conforme eu revelei no meu livro “De como vovô virou avestruz”, desde a meninice eu era fascinado pela aviação. Penso que esse interesse foi em grande parte provocado pelo fato de eu ter um tio que era piloto da velhíssima guarda, o então Cap. do Exército, da arma de aviação, Alzir Rodrigues Lima que, anos mais tarde, já Coronel e Cmt. da Escola de Aviação Militar, propiciou o meu primeiro voo (eu era, no tempo, aluno do 3º ano do Colégio Militar), lá pelos anos de 1930, num avião de bombardeio, bimotor Lioré et Olivier. Eu residia, nessa época, em Deodoro, na vizinhança do Campo dos Afonsos e, do quintal de minha casa, eu apreciava, embevecido, as evoluções dos Moranes, Nieuport-Delage, Potez e os outros aviões franceses, com que era equipada a nossa 5ª arma do Exército, naqueles tempos. Vindo como aluno do Colégio Militar acabei voando, dessa vez para valer, num avião-escola recém adquirido nos Estados Unidos - Wacco F - que, por coincidência, foi nele que fiz meu “laché”, alguns anos mais tarde, já como cadete da arma de aviação do Exército, em 1935.
Quais as dificuldades encontradas pelo 1º Grupo de Caça no Teatro de operações?
O nosso exaustivo treinamento, que visou nos tornar aptos ao combate em avião, isto é, a caça aérea na sua mais pura essência, não mais seria aplicado na realidade que encontramos na Itália. Para complementar o treinamento fizemos, algumas vezes, exercícios de bombardeio picado; aliás, com mais frequência, na fase inicial do nossa adestramento, ainda no Panamá, em velhos aviões P-40. O que nos esperava na Itália era bem diferente: o domínio do ar dos aliados era absoluto e a campanha naquela frente se desenvolvia, francamente, na 2ª fase da guerra denominada “isolamento do campo de batalha”. Essa fase nos impunha o corte das comunicações entre a vanguarda, onde as tropas de terra combatiam, e as suas fontes de abastecimento, de munição, víveres, recompletamento e reforço de tropas, etc.
O P-47 era o avião ideal para esse tipo de ação: poderoso, robusto, capaz de transportar grande carga de bombas, bem armado, etc. Quando lá chegamos e enfrentamos essa nova realidade, nos ocorreu solicitarmos aos americanos que no ensejassem um treinamento prévio de bombardeio picado. Ao que nos foi respondido: “Pois não...Mas, do outro lado do Bomb Line”. Isto é: o treinamento vocês farão em cima dos tedescos. De fato, em pouco tempo, já estávamos suficientemente treinados para cortar linhas de estrada de ferro, destruir pontes, depósitos e fábricas, como se tivéssemos treinado bombardeio picado a vida inteira.
A outra grande dificuldade com que nos deparamos foi surgindo com a continuação da nossa atividade, à proporção que as nossas perdas foram se acentuando e o nosso Estado Maior não nos enviava reposição de pilotos. Parece até que eles é que tentavam promover o isolamento do campo de batalha, mas de maneira “sui generis”, eles é que nos isolavam no campo de batalha.
O desempenho do 1º GAvCa nas missões de combate entretanto, era soberbo e até, muitas vezes, superior ao dos nossas companheiros de luta naquele “front” (o livro do Brig. Rui e algumas conferências do Brig. Wanderley iluminam, com dados e estatísticas, o nosso esforço em confronto com os demais esquadrões de caça baseados no teatro italiano). As citações recebidas pelo 1º GAvCa, provindas do Alto Comando americano, são comprovantes eloqüentes da nossa atuação.
Faça um paralelo entre a FAB da Segunda Guerra e a atual.
Sem nenhum prurido de orgulho ou convencimento, aquele impulso inicial que o Cel. Ortega se empenhou em dar à FAB, nos anos de 1943, padronizando o treinamento aéreo e o espírito militar dos alunos e instrutores da Escola de Aeronáutica dos Afonsos, além de um outro, muito importante que se desenrolava no nordeste com os USBATU, só foi possível ser formalizado e consolidado com a volta do 1º GAvCa da Itália. A nossa Unidade, o nosso treinamento e a nossa experiência, modificaram definitivamente a feição da Força Aérea Brasileira como corporação militar moderna e eficiente. Eu próprio, que não servi em Sta. Cruz, mas que aceitando, ao regressar da Itália, um convite do então Cel. Wanderley, para comandar um dos Grupos de A-20 em Cumbica, tive a oportunidade de imprimir uma feição militar e guerreira à instrução e à utilização do A-20, na ocasião. Quanto aos novos padrões de Instrução implantados em Sta. Cruz, não é preciso nem comentar: ali se implantou a nova mentalidade militar da FAB, que serviu de modelo para o restante das unidades de nossa corporação.
Eu, que vim dos tempos da aviação militar do Exército, cuja mentalidade ainda persistia mesmo na época em que o Cel. Fontenelle era Cmt. dos Afonsos, assisti a mais radical transformação da aviação militar brasileira: sim, após a guerra, transformamo-nos numa verdadeira Força Aérea, com as limitações que a indústria e os meios disponíveis ainda nos impunham.
São duas fases inteiramente diferentes: a FAB antes da guerra e a FAB após o conflito. E o 1º GAvCa é, a meu ver, o maior fator dessa transformação.
Como foi o dia 22 de abril de 1945?
Quem já leu o livro do Brig. Rui, ou conhece um pouco da história do 1º GAvCa na Itália, sabe que o então Cel. Nero Moura resolveu, independente da vontade de seus comandados, submeter os mais velhos a uma rigorosa inspeção de saúde. Foi então verificado, como ele com certeza já vinha observando, que os mais velhos - os “comandantes de esquadrilha” e os seus “Operações” - estavam com suas reservas físicas bem desgastadas. O Cap. Joel Miranda já tinha sido abatido e se achava do outro lado da linha sob a proteção dos “partizans"; o Cap. Newton Lagares estava, no momento, afastado. Restávamos eu, o Cap. Lafayette Rodrigues e o Maj. Oswaldo Pamplona Pinto. Em virtude da inspeção de saúde, levada a termo pelo Dr. Thomas Girdwood, fomos afastados do voo e mandados de regresso ao Brasil. Assim, não tivemos oportunidade de tomar parte no magnífico esforço de nossos companheiros, no memorável 22 de abril. Mas o registro histórico do comportamento dos pilotos e apoio, e dos resultados desse esforço, quase sobre-humano, dos componentes do 1º GAvCa nesse dia, dão eloquente testemunha da sua importante atuação e justifica a escolha da data, como Dia da Aviação de Caça, dentre os datas comemorativas da Força Aérea Brasileira.
O Sr. teria alguma experiência singular no campo de batalha para relatar?
Sim. Tenho algumas que considero não terem obtido o êxito que eu esperava e outras bastante gratificantes. Contudo, esclareço, que aquelas que não reputo as de melhor resultado jamais foram executadas pondo em risco desnecessário os meus liderados da Esquadrilha Azul.
Aliás, devo registrar que, sob o meu comando, nunca perdi qualquer membro da minha esquadrilha. O fator sorte pesou, sem dúvida, mas sempre me mantive muito atento aos quesitos de segurança, no cumprimento das missões. Por exemplo, foi recomendado pelo comando americano - e que se tornou padrão de ação no combate dos caças-bombardeiro - que os ataques às estações ferroviárias, onde estivessem estacionados muitos vagões e locomotivas, fossem feitos em uma única passagem sobre o objetivo.
Tal ataque deveria ser bem planejado para se conseguir, principalmente, surpresa. Fazer uma segunda passagem era se expor em demasia à defesa antiaérea ali montada, que se punha em condições de atirar em apenas 10 segundos. Eu nunca voltava a atacar alvos dessa natureza. Se o único ataque fosse bem urdido obtinha-se um êxito muito bom.
A missão mais espetacular que cumpri foi aquela em que consegui destruir no solo um JU 88, na pequena cidade de Ghedi, ao sul do lago de Garda. Como o domínio do ar pelos aliados era absoluto na fase em que começamos a operar, não havia possibilidade de enfrentarmos aviões alemães no ar. As poucas aeronaves que eles possuíam naquele teatro de operações, só eram utilizadas à noite em incursões de observação. Eram muito bem camuflados e melhor ainda protegidos.
No dia 29 de janeiro de 1945, decolei de Pisa comandando duas Esquadrilhas: a primeira eu, Ten. Santos, Ten. Neiva e Ten. Goulart; a segunda - sob meu comando - era liderada pelo Cap. Lagares, sendo seu nº 2 o Ten. Tormim, nº 3 Ten. Rui e nº 4 o Ten. Coelho. O nosso objetivo era atingir a linha ferroviária nas mediações de Lavis, localizado no Passo de Brenner. Eu, nessa missão, tenho o crédito pessoal de ter conseguido um corte na ferrovia. Após o bombardeio, cada uma das esquadrilhas devia se separar e cobrir as faixas afastadas no terreno, para as destruições de alvos terrestres. A minha, isto é a Azul (a outro, a do Cap. Lagares era a Verde) coube uma faixa que passava ao lado da localidade de Ghedi. Íamos em altura razoável, porque o avião do Ten. Goulart estava vazando um pouco de óleo. No través de Ghedi eu avistei, no seu aeródromo, a silhueta de um JU-88, porque a rede de camuflagem, com a nevada da noite anterior, tinha cedido e, assim, ficou mais visível o avião, no seu abrigo próximo da pista. Analisei rapidamente a configuração do terreno e verifiquei que a abertura do abrigo, isto é, da trincheira onde o avião estava estacionado, ficava justamente situada numa reta que a torre da igreja de Ghedi e a guarita do campo demarcavam. Ordenei que o 2º elemento ficasse de “top-cover" (cobertura de topo) a uns 2 mil metros de altura, um pouco afastado do aeródromo, e eu fui para o rés do chão, acompanhado do meu ala, o Ten. Santos. Isto é, desaparecidos dos “olhos” da defesa do avião alemão.
Procurei, sempre rasante, acertar a reta igreja-guarita, o que consegui. Daí a pouco vi um enorme trator que varria, na pista, a neve que se acumulara durante a noite. Fiquei, por um instante, em dúvida se destruía o trator (cujo motorista abandonou-o em corrida desabalada) ou o avião que deveria aparecer em seguida. Optei, lógico, pelo avião! Fiz o “balsing” (manobra que consiste em cabrar rapidamente o avião e colocá-lo num ângulo de 45º com o alvo terrestre) e, assim, o JU-88 apareceu em verdadeira grandeza no meu visor de tiro. As balas de .50 da defesa pipocavam com intensidade em torno de mim e de meu ala, que voava a meu lado, um pouco atrás. Na aproximação ouvi pela rádio uma mensagem inquietante: “Capitão, o seu avião está pegando fogo!” Como não era eu, cogitei: "Coitado, quem terá sido o companheiro atingido?" - e prossegui no ataque. Despejei longas rajadas contra o alvo. E eles em mim. Terminado o assalto, continuei rente ao chão, manete a pleno e fazendo manobras evasivas, até me afastar dali. Perguntei ao Neiva, que acompanhava tudo lá de cima:
- “Então, o JU pegou fogo?...”
- “Não, Capitão”, respondeu ele.
- “Então, você toma o rumo de volta que daqui a pouco eu me junto a vocês.”
Nessa mesma missão, a “Blue” ainda destruiu, no “strafing”, um transporte motorizado e danificou mais dois. Ao chegar em Pisa eu descrevi o desenrolar da ação ao Ten. Miranda Correia, o A-2. Pesava-me uma preocupação muito séria: é que as tentativas de destruir aviões inimigos no solo eram consideradas manobras arriscadas, que deviam ser sempre evitadas. E eu, que sempre fora zeloso pela segurança dos membros da minha esquadrilha - tinha posto em perigo a mim e ao meu ala. Os aviões do inimigo, pouco numerosos então, eram por eles defendidos da maneira mais acirrada. Pois é, eu atacara um e não tinha visto o resultado esperado.
Fui me deitar, essa noite, cheio de preocupação. Lá pelas 9 ou 10 horas da noite, o Miranda Correia me acorda. “Pronto, pensei, o Nero vai me suspender do voo, no mínimo...” , entretanto o Miranda me falou:
“- Olha. Fortunato, os americanos que passaram logo depois de você, por Ghedi, reportaram o teu JU 88 pegando fogo!...”
Foi minha missão “fita azul”.
Ah! ia me esquecendo de um pormenor interessante: na hora de relatar a missão para o A-2 eu perguntei:
“- Qual foi o nosso companheiro cujo avião pegou fogo?"
Miranda: “- Pegou fogo?... não sei ainda...”
Eu: “- Mas ouvi nitidamente a mensagem: Capitão, seu avião está pegando fogo”
Depois de rápido silêncio, o Santos falou:
“- Fui eu, Capitão, que avisei ao senhor...”
É que nós estávamos tão “grudados” ao solo, quando ataquei o bombardeiro alemão, que a minha hélice levantava uma intensa poeirada de neve, dando a impressão que eram rolos de fumaça, desprendendo, do meu avião...
Como eram vistos os pilotos brasileiros pelos americanos?
No início de nossa atuação sei que os americanos não depositavam muita confiança em nós. Com o tempo, conquistamos o respeito deles pelo nosso denodo e eficiência, a tal ponto que nos outorgaram o diploma da “Citation”, ao qual só fizeram jus duas unidades aéreas não americanas: uma inglesa durante a batalha da Inglaterra e o nosso Grupo de Caça.
Como foi recebido, pelos veteranos recém-chegados ao Brasil, a nova missão de formar Pilotos de Caça aproveitando a experiência adquirida durante a guerra?
Embora eu, em especial, não recebesse missão especifica de formar novos pilotos de caça (Já que o Cel. Wanderley me levou para São Paulo para adestrar os pilotos de A-20, bombardeiro rasante) senti-me, como todos os demais companheiros do 1º GAvCa que voltaram da Itália, absolutamente responsável pela implantação de uma nova mentalidade militar dentro da Força Aérea. A nossa nova missão era a de formar uma força aérea militar eficiente e adestrada para as missões de defesa do espaço aéreo brasileiro.
Como os veteranos vêem o “Espírito da Caça” nos dias atuais?
O "Espírito do Caça” é o maior legado de todos os esforços e sacrifícios que fizemos. Hoje nos orgulhamos, emocionados, com essa mentalidade que os jovens herdaram de nós, fortalecendo-a e aprimorando-a. Não há palavras com que se possa exprimir esse sentimento de orgulho e patriotismo.
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