Santos Dumont, nosso admirável Pai da Aviação, sempre guiou a si mesmo na
conquista do conhecimento. No texto de Alexandre Medeiros veremos como ele trilhou os primeiros passos de
seus estudos técnicos. O presente artigo está
baseado em parte do primeiro capítulo do livro
Santos Dumont e a Física do Cotidiano, do mesmo
autor (Editora Livraria da Física, São Paulo,
2006).
Boa leitura.
Bom domingo.
Feliz Dia dos Pais!!
Santos Dumont e seu professor de física
O próprio Santos Dumont relata
em suas memórias que o seu
pai, um engenheiro que havia
estudado na França, na École Centrale
des Art et Métiers, conhecendo a sua
paixão pelas questões técnicas e científicas, recomendou que ele fosse para
Paris onde deveria procurar um especialista em Física, Química, mecânica e
eletricidade. Segundo relata Santos Dumont, o seu pai aconselhou-o ainda a
estudar aquelas matérias e ter sempre
em mente que o futuro do mundo estava na mecânica.
Analisando este trecho das memórias
de Santos Dumont e
tendo em mente que
a mecânica e a eletricidade são partes
integrantes do que
denominamos de
Física, somos tentados a achar o seu discurso um tanto
redundante ou até mesmo equivocado.
Entretanto, o verdadeiro significado
presente nas palavras do velho Henrique Dumont deve ser interpretado
como uma sugestão para que o jovem
Alberto concentrasse os seus esforços
nas mais recentes aplicações da mecânica e da eletricidade, ou seja, nos campos da engenharia mecânica e da nascente engenharia elétrica.
Além disso, o velho Henrique, conhecendo bem o espírito indômito porém introvertido de seu filho, que dificilmente se adequaria a qualquer rigidez curricular, reforçou a recomendação dada ainda na primeira viagem
a Paris para que ele procurasse um bom
professor particular como alternativa
ao tradicional ensino formal universitário.
Santos Dumont iniciou os seus estudos mais avançados em Paris na primavera de 1892 e logo em seguida, já
em agosto daquele mesmo ano, receberia a terrível notícia do falecimento
de seu pai no Brasil. Após a morte de
Henrique Dumont, Alberto frequentou
livremente, sem qualquer compromisso formal, durante cinco anos, de 1892
a 1897, as aulas que lhe interessavam
nos cursos de engenharia na Sorbonne
e também no College
de France. Este é um
detalhe muito importante de sua formação intelectual,
destacado por Gérard Hartmann, mas
praticamente ignorado por muitos dos
seus biógrafos.
No ano seguinte, de 1893, com 21
anos de idade, Santos Dumont passou
um tempo na Inglaterra, durante o
qual frequentou, novamente como um
aluno ouvinte, provavelmente aulas de
navegação no Merchant Venturers’ Technical College da cidade de Bristol ,
onde alguns de seus primos eram estudantes regulares. Ele se interessou por
aquela instituição, que daria origem à
Universidade de Bristol, também
provavelmente devido à sua forte
reputação na área da engenharia,
especialmente na área de navegação.
Não existem, contudo, registros escritos oficiais daquele seu período naquela
instituição, pois um bombardeio ocorrido na Segunda Guerra Mundial destruiu uma parte relevante dos arquivos
da instituição.
Como destaca Henrique Lins Barros, temos, entretanto, o relato de
um colega seu daquela época, o brasileiro Agenor Barbosa. Segundo ele, Santos Dumont era um aluno pouco aplicado, ou melhor, nada estudioso para as
‘teorias’, mas de admirável talento prático
e mecânico e, desde aí, revelando-se, em
tudo, um gênio inventivo.
O seu guia principal nos seus estudos acadêmicos não foi, entretanto,
nenhum dos professores a cujas aulas
tenha ele eventualmente assistido na
Sorbonne, no College de France e nem
mesmo no Merchant Venturers’ Technical College de Bristol. Naqueles locais,
Santos Dumont nunca seguiu currículos regulares, nem jamais estudou
de um modo mais formal. Na verdade,
o grande orientador dos seus estudos
foi ele mesmo, com a sua liberdade
indômita e o seu desejo incontido de
guiar o próprio destino, de buscar os
seus próprios caminhos.
Durante aqueles cinco anos formativos, ele não apenas estudou, mas
também fez algumas viagens, não apenas à Inglaterra. Tudo isso fazia parte
de sua auto-educação. Há relatos na
literatura, por exemplo, sua escalada
ao Monte Branco, o ponto mais alto
da Europa e que muito o teria deslumbrado. O seu amor pelas alturas ultrapassava agora em muito a simples
subida da torre Eiffel realizada ainda
em sua primeira viagem a Paris.
Naqueles seus anos de estudos, ele
não ia muito a festas e bebia pouco,
mas já começava a frequentar a animada noite parisiense, embora sem o
mesmo destaque em relação ao que
obteria anos depois, após os seus arriscados vôos de balão.
Para relaxar, ele recorria também aos
novos carros adquiridos. Deixou de lado o seu Peugeot e
comprou um novo
e mais potente De
Dion e também um
triciclo Dion-Button
com motor de dois
tempos. Ele tinha mais automóveis que
qualquer outra pessoa em Paris, mas
aquelas suas caras engenhocas quebravam frequentemente. O lado bom
dessa deficiência primitiva dos seus
automóveis é que aquilo obrigava-o a
tornar-se cada vez mais íntimo dos segredos da máquina a explosão.
Ele fez novamente outras tentativas de voar em um balão esférico com
os demonstradores de feiras, mas todas
elas sem o esperado sucesso, pois
aqueles indivíduos exigiam-lhe quantias absurdas e exageravam nos perigos
da aventura. Santos Dumont chegou
a comentar em seus escritos que era
como se eles quisessem guardar os segredos da aerostação apenas para si
mesmos. Assim, entre algumas viagens, noitadas e passeios de automó-
veis, ele seguia a sua vida de dedicação
aos estudos em Paris naqueles anos de
1892 a 1897.
Desde o início desse seu período formativo em Paris, Santos Dumont seguiu à risca o conselho de seu pai e conseguiu um bom professor particular,
não propriamente para guiá-lo, mas
sim para auxiliar nos seus estudos
individuais. Ele conta que logo conseguiu como tutor um antigo professor
universitário francês, de origem espanhola, chamado Garcia e que veio a lhe
ensinar praticamente tudo o que sabia
sobre a Ciência.
O próprio Santos Dumont contanos, em seu livro O Que Eu Ví; O Que Nós
Veremos, que estudou com o professor
Garcia por muitos anos e que de fato
não apenas estudou, mas que também
viajou bastante naqueles anos formativos do seu conhecimento científico.
Não se sabe ao certo quem era esse
tal professor Garcia, onde ele havia lecionado nem mesmo qual era o seu
primeiro nome. Tudo o que se sabe, de
fato, a respeito deste misterioso personagem, é que ele parece ter sido realmente a única pessoa
a ter lecionado determinados conteúdos
de Física de forma regular a Santos Dumont, ainda que de
um modo bastante
informal e bem adequado à personalidade do seu abastado, inteligente e
caprichoso aluno.
Mas, afinal, como foram os tais estudos de Santos Dumont com esse tal
professor Garcia, entre 1892 e 1897?
Quase todas as suas biografias omitem
este seu importante período formativo,
justamente o período no qual Santos
Dumont estudou uma série de coisas
que lhe interessavam, dentre elas a Fí-
sica. Como saber, portanto, como teria
sido esta sua formação?
Paul Hoffman descreve este período da vida de Santos Dumont como
uma fase na qual ele teria mergulhado
intensamente nos estudos, chegando a
tornar-se um autêntico “rato de biblioteca”. Não sabemos até que ponto uma
tal inferência é de fato verdadeira, mas
ela parece bastante factível, apesar das
diversões já assinaladas, se levarmos
em conta os seus interesses muito claros nos conhecimentos que desejava
adquirir. Não se deve, entretanto, inferir
de uma tal afirmação que ele tenha seguido alguma coisa semelhante a um
rígido programa de estudos traçado pelo tal professor Garcia, a quem ele parecia muito estimar. O verdadeiro
programa de estudos de Santos Dumont foi estabelecido por ele mesmo,
certamente com a ajuda de Garcia, mas
jamais comandado por este.
Peter Wykeham, outro importante biógrafo, conjectura com muita
sensatez que mercê das características
muito peculiares da personalidade de
Santos Dumont e dos seus interesses
específicos de estudo, Garcia deve ter
sido não propriamente um guia, mas
sim um conselheiro seguro, alguém em
que ele podia confiar e com quem podia tirar as suas dúvidas sobre os assuntos estudados. Ele, de início, deve
ter tentado outros professores, como
conjectura Wykeham, mas não deveria ser tarefa fácil para mestres aposentados enfrentar uma entrevista com
um jovem estrangeiro pequenino e
dono de si mesmo, plenamente consciente de suas possibilidades. Garcia parece ter sido um achado feliz, um mestre, possivelmente aposentado, de Ciências e engenharia e que teria tido uma
atitude positiva em relação a Santos
Dumont - sempre receoso do ridículo -
e diante de quem Alberto não se sentia
constrangido em revelar os seus anseios
aeronáuticos. Garcia visitava-o, provavelmente, todos os dias e trazia consigo
algumas sugestões interessantes das
muitas opções de estudo em Paris, de
cursos que valeriam a pena serem
seguidos ou de palestras que mereceriam ser assistidas. Ele deveria auxiliar
Santos Dumont, sobretudo, a ter uma
atitude de avaliação crítica em face das
muitas possibilidades de acesso ao conhecimento disponíveis naquela grande
cidade. Garcia dava-lhe aulas particulares sobre conteúdos específicos, discutia com ele as coisas interessantes que
houvesse visto em alguma palestra ou
aula que tivesse presenciado recentemente em alguma Universidade, alguma questão interessante aparecida nos
livros que ele lia
com frequência e,
além disso, tirava as
suas dúvidas, quando necessário.
O professor
Garcia dava-lhe, sem dúvida, uma ajuda
inestimável, mas não era jamais um
verdadeiro guia. Ele não conduzia,
verdadeiramente, o processo educativo
de Santos Dumont; essa era uma tarefa
que cabia ao próprio Dumont fazê-lo,
sob a sua própria conta e risco. Não era,
assim, um relacionamento propriamente entre um mestre e o seu discípulo.
A influência exercida era útil, mas controlada pelo próprio Santos Dumont. O
resultado prático era que apesar da sua
educação ser ampla e entusiasticamente
conduzida, ela era também caracterizada por uma certa superficialidade.
Pode-se conjecturar que a sua educação científica poderia ter sido bem
mais sólida, se não houvesse sido ele
mesmo o próprio guia de todo o seu
processo educativo; se não fosse ele
mesmo que estivesse sempre no comando das direções a seguir. Mas isto
seria praticamente impossível, pois
Alberto aprendia sempre pelos seus
próprios métodos de estudo.
Com a fortuna que possuía e que
não parava de crescer em face das boas
aplicações que ele havia feito em ações
na bolsa de valores, o admirável mesmo é que ele tenha de fato estudado! E
a admiração maior é pelo fato dele ter
perseverado em seu objetivo de construir a sua auto-educação.
Em seu tempo, ainda não existiam, obviamente, cursos de engenharia
aeronáutica. Deste modo, ele jamais poderia ter se formado em um curso
universitário desta natureza. E outros
títulos seriam para ele não mais do que
um simples ornamento dispensável.
Também por isso, Santos Dumont
optou, mais uma vez, pela sua liberdade, por não seguir nenhum curso
universitário. Ele não se formou em engenharia aeronáutica, ele se fez a si próprio um engenheiro aeronáutico, um
pioneiro autodidata que daria passos
importantes para a inauguração de
uma nova era nas conquistas tecnológicas aeronáuticas da humanidade.
Mas, afinal, como podemos saber o
que Santos Dumont
aprendeu de Física e
quanto esse conhecimento influenciou
em sua trajetória
seguinte de conquistas tecnológicas?
Que conteúdos de Física eram esses
não se sabe ao certo, mas uma análise
cuidadosa dos trabalhos e das aventuras de Santos Dumont, assim como dos
seus escritos sobre os mesmos, pode
conduzir-nos a inferirmos os seus possíveis conhecimentos nesta área.
Cremos que com um tal esforço analítico podemos desvendar muito do que,
de fato, Santos Dumont estudou e
aprendeu e que tipo de potencial interpretativo da Natureza um tal conhecimento lhe propiciou. Do mesmo modo,
também, podemos reconhecer as possíveis deficiências e limitações deste seu
conhecimento.
Além disso, em um tal
percurso, podemos ser levados a analisar uma série de fenômenos do cotidiano à luz das leis da Física em
situações diversas ensejadas por Santos
Dumont e, desta forma, refletirmos,
aprendermos e ensinarmos uma série
de conteúdos interessantes e úteis na
compreensão do universo que nos cerca. Este, entretanto, é um desafio que
transcende a extensão deste presente
artigo e que nos remete necessariamente para estudos mais específicos
que contemplem um tal tema.
Texto: Alexandre Medeiros
Fonte: www.sbfisica.org.br