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domingo, 8 de novembro de 2015

Especial de Domingo

Voando com os pássaros


Julio Cezar Ribeiro de Souza, pioneirismo esquecido.

Pesquisador paraense que se inspirou em aves para desenvolver dirigibilidade aérea sofreu plágio e foi esquecido pela História

Em 1880 as tentativas do homem em conquistar o ar dividiam-se em duas grandes correntes: a aviação e o balonismo. A aviação não tinha êxito devido principalmente à falta de motores potentes o suficiente para que os primeiros modelos alçassem voo. Já no balonismo, a ascensão não era impedimento. A dificuldade estava na dirigibilidade. Cerca de 170 anos após o brasileiro Bartolomeu Lourenço de Gusmão ter realizado a primeira ascensão de um balão com ar quente, outro brasileiro deu aos aeróstatos a sonhada dirigibilidade. O cientista paraense Julio Cezar Ribeiro de Souza uniu características do balonismo e da aviação e assim criou um sistema de navegação aérea original, baseado no voo dos pássaros planadores, preconizando a estrutura fusiforme dissimétrica dos balões. Essa forma se expressa num formato mais volumoso da proa e afilado da popa. Este desenho viria a ser o dos consagrados zepelins que cruzaram o Atlântico e deram a volta ao mundo na primeira metade do século 20. Julio Cezar Ribeiro de Souza nasceu na Vila de São José do Acará, no atual estado do Pará, em 13 de junho de 1843, e ficou órfão de pai ainda criança. Em Belém do Pará fez estudos primário e secundário antes de transferir-se para o Rio de Janeiro, então capital do Império e aí completou o curso preparatório da Escola Militar. Em 1866 seguiu para Montevidéu, onde se integrou às forças militares brasileiras na Guerra do Paraguai. Foi durante a guerra, em 1867, que houve o primeiro uso militar de balões de observação na América do Sul. Em 1868, quando ocupava o posto de segundo-cadete do 3º Batalhão de Artilharia a pé, teve seu pedido de escusa do serviço militar recusado pelo comando militar brasileiro. Em seguida, foi deslocado para o Paraguai, de onde retornou ao final de 1869. A partir de 1870 ele se ocupa do jornalismo e magistério, além de cargos como funcionário público. Apesar de seu talento como jornalista e poeta e para línguas, foi sem dúvida a navegação aérea a maior das contribuições de Julio Cezar Ribeiro de Souza. Segundo seus relatos, datam de 1874 os primeiros estudos sistemáticos do voo dos pássaros em busca de uma teoria para viabilizar a navegação aérea. Mas foi só em 1880 que saíram publicados os resultados dessas pesquisas. Em 29 de julho desse ano escreveu uma carta ao presidente da Província do Pará revelando ter encontrado o ponto de apoio dos corpos mais leves que o ar e solicitando uma audiência reservada para, na sua presença e na dos homens da ciência da Província, expor sua teoria. Ainda nesta carta registrou que, caso ficasse reconhecido o mérito de sua descoberta, esperava que fossem solicitados ao governo do Império os meios para que se pudesse mandar construir na Europa um balão segundo seu modelo e que lhe fossem garantidos os privilégios da invenção. Com a audiência, as opiniões se dividiram, o que o levou a fazer, ainda em Belém, demonstrações públicas com protótipos de balões para comprovar suas teorias. Julio Cezar Ribeiro de Souza já havia utilizado balões pequenos, com até 2 metros de comprimento. Para a demonstração constrói um balão de 6 metros de comprimento e 2 metros de maior diâmetro, experimentando-o na presença de poucas pessoas, no dia 30 de agosto de 1880. Em seguida preparou um balão ainda maior, com papel coberto de gelatina, que deveria ser preenchido com hidrogênio, produzido no gasômetro da cidade. A experiência não ocorreu no dia marcado porque não foi possível a produção do gás. O inventor paraense logo se convenceu de que, mesmo que conseguisse produzir o hidrogênio, o material de que dispunha para fabricar balões era inadequado. Julio Cezar Ribeiro de Souza, em nota publicada em jornal local, esclarece à população a impossibilidade de realizar uma experiência definitiva de seu invento no Pará, anunciando que deveria brevemente embarcar para a capital do Império. No Rio de Janeiro, dirige um ofício ao Instituto Politécnico Brasileiro, pedindo uma sessão pública para expor sua teoria, o que ocorre em 15 de março de 1881, quando é feita a leitura de sua Memória sobre a Navegação Aérea, documento que se encontra atualmente no Arquivo Nacional. A comissão designada para analisar seu trabalho emite parecer favorável, que passa a ser discutido nas reuniões do Instituto. A Assembléia Provincial do Pará aprova a concessão de uma subvenção no valor de 20 contos de réis para a construção de um balão de acordo com seu sistema, condicionada à aprovação do parecer da comissão, o que ocorre em seguida, juntamente com a concessão da patente brasileira de seu sistema de navegação aérea, aplicável à navegação submarina. Julio Cezar Ribeiro de Souza viaja para França em setembro de 1881 para providenciar a construção de seu balão. Em Paris contrata os serviços da Casa Lachambre para este fim e procura patentear sua invenção em algumas das principais capitais européias. A patente francesa foi a primeira a ser obtida, em 25 de outubro daquele ano. Dois dias depois faz a leitura de uma versão em francês de sua Memória sobre a Navegação Aérea diante da Sociedade Francesa de Navegação Aérea (SFNA). Pronto o balão Victoria, em homenagem a sua esposa, com dez metros de comprimento e dois metros de maior diâmetro, realiza experiências em Paris nos dias 8 e 12 de novembro, obtendo êxito, conforme noticiado pela imprensa parisiense. No primeiro dia dessas experiências, Julio Cezar foi recebido como membro associado da SFNA. Em seguida, retorna a Belém, deixando encomendada na Casa Lachambre a construção de um grande dirigível, capaz de realizar voos tripulados. Curiosamente, Alberto Santos Dumont, cerca de 16 anos mais tarde, contrataria os serviços dessa mesma Casa para a construção dos seus primeiros balões. De volta ao Pará, Julio Cezar repete, na manhã do Natal de 1881, as experiências realizadas na França, cujo êxito é noticiado com entusiasmo pela imprensa local. No início de 1882 viaja para o Rio de Janeiro onde também faz demonstração pública no dia 29 de março, na Escola Militar, de que tinha sido aluno, em presença do imperador Dom Pedro II e de grande número de pessoas. Pelo fato de o Victoria ser um balão de testes, sem capacidade para deslocar o peso de um homem, devia ser conduzido do solo, por meio de manobras que consistiam em largar as extensas cordas que o prendiam, a fim de que se percebesse que não era levado pelo vento como um balão comum, mas, ao contrário, navegava na direção de sua proa, mesmo que oposta à corrente de ar. As pessoas que assistiram à experiência, provavelmente por não entenderem que pouco além disso poderia ser feito com um balão com aquelas dimensões, ou por não terem sido devidamente alertadas para o tipo de experimento que seria realizado, ficaram desapontadas. Muitas pessoas presentes à experiência no Rio de Janeiro não entendiam que, antes de construir um balão dirigível de grandes dimensões, demandando enorme quantidade de recursos, era necessária a realização de experiências com um protótipo de dimensões reduzidas. O objetivo de Julio Cezar, plenamente alcançado na França, segundo atestaram especialistas na área, não foi compreendido pelas pessoas que assistiram à demonstração na Escola Militar. E isso dificultou a obtenção dos recursos para a conclusão do dirigível encomendado em Paris. A experiência no Rio deflagrou um intenso debate sobre as idéias de Julio Cezar, tanto no Instituto Politécnico como na imprensa carioca, o que se estendeu por alguns meses até a aprovação por unanimidade no Instituto de uma moção em favor da viabilidade teórica do processo, em 23 de junho de 1882. Obtida a autorização, o inventor retorna a Paris em dezembro desse ano e contrata definitivamente os serviços da Casa Lachambre para a construção do seu grande balão. Pressionado pelos custos de estada em Paris, volta a Belém para aguardar a conclusão do dirigível. Após o recebimento de um telegrama do construtor, retorna à França, mas sem recursos para encher o balão com hidrogênio e consciente das dificuldades em fazer a experiência no Brasil, devido à falta de pessoal capacitado, solicita à prefeitura de Paris permissão para realizar uma exposição paga de seu balão, o que lhe é negado. Aparentemente sem alternativa, retorna com o balão e seus acessórios para Belém. Em julho de 1883, na capital paraense, Julio Cezar Ribeiro de Souza tenta obter 16 contos de réis para a produção dos quase três milhões de litros de hidrogênio necessários ao enchimento do balão. Com esse objetivo, recebe autorização do bispo do Pará para expor seu dirigível no interior da catedral de Belém, e realiza conferências no Teatro da Paz. Os recursos só são obtidos quase um ano depois de seu retorno, fornecidos pela província do Amazonas, e a tentativa de ascensão do balão, que foi denominado Santa Maria de Belém, com 52 metros de comprimento e 10,4 metros de maior diâmetro, foi marcada para a manhã do dia 12 de julho de 1884, em Belém.

A exemplo do que ocorrera na primeira exposição pública, em 4 de outubro de 1880, dificuldades relacionadas à produção de hidrogênio impediram a ascensão do balão.
A explicação para isso foram perfurações nas mangueiras de condução do gás por derramamento acidental de ácido e por danificação de uma das baterias auxiliares. Em seguida Julio Cezar recebe a notícia de que, em 9 de agosto de 1884, os capitães franceses Charles Renard e Arthur C. Krebs, no dirigível militar La France, com aproximadamente as mesmas medidas (52,4 metros de comprimento e 8,4 metros de maior diâmetro) que o Santa Maria de Belém, haviam realizado pela primeira vez na história um percurso fechado a bordo de um balão, retornando ao ponto de partida após percorrerem aproximadamente 7.600 metros durante 23 minutos. O La France possuía a estrutura fusiforme dissimétrica preconizada por Julio Cezar, sem que seus projetistas tivessem feito qualquer referência às teorias do inventor brasileiro, apesar de estas terem sido patenteadas na França quase três anos antes daquela data. Esse acontecimento faz com que Julio Cezar Ribeiro de Souza escreva um longo protesto intitulado A Direção dos Balões, publicado na imprensa paraense, em português e posteriormente em francês, e encaminhe ao Instituto Politécnico Brasileiro um requerimento solicitando a prioridade do sistema de balões fusiformes dissimétricos, cujo parecer favorável é aprovado pelo Instituto em 2 setembro de 1885. Após esta aprovação, a Assembléia Provincial do Pará concede um novo auxílio no valor de 25 contos de réis a Julio Cezar. Ele retorna à Europa disposto a provar a primazia de seu invento. Após uma breve passagem por Londres, chega a Paris no início de maio de 1886, propondo-se debater publicamente o assunto com Renard e Krebs. Uma vez que os capitães franceses não aceitam o debate, Julio Cezar, de posse de um novo balão de testes do seu sistema, denominado Cruzeiro, realiza experiências em 11 e 16 de junho daquele ano, na presença da representação brasileira em Paris, após o que retorna a Belém.

O Plágio dos Militares Franceses
No Pará, dedicou-se a escrever um livro em francês intitulado Fiat Lux, segundo suas próprias palavras: "(...) expondo com a máxima minúcia a teoria de navegação aérea e o meu sistema nela fundado, e provando à sociedade, não só que o sistema tantas vezes experimentado na França, com pleno êxito pelos capitães franceses Renard e Krebs, é apenas um plágio, e plágio caricato do meu, como, apesar dos mistérios que o põem fora do alcance de um exame minucioso, já o declarou o Instituto Brasileiro, e, antes deste, publicações científicas da Europa (...)". Julio Cezar passou a publicar em partes, na imprensa paraense, a partir do início de junho de 1887, uma tradução deste livro para o português. A série foi interrompida em agosto seguinte, quando já enfermo, falecendo em 14 de outubro, vítima de beribéri, enfermidade relacionada à deficiência de vitamina B1. Nesse momento, ocupava o cargo de chefe de seção da secretaria do governo da Província do Pará. As dificuldades em fazer reconhecer a primazia de um brasileiro na conquista do ar não atingem isoladamente este paraense notável. Os irmãos franceses Joseph Michel e Etienne Montgolfier são considerados por muitos como os pioneiros na ascensão de balões de ar quente, apesar de o padre santista Bartolomeu Lourenço de Gusmão ter realizado em Lisboa as primeiras ascensões públicas do gênero mais de setenta anos antes, no início de agosto de 1709. Mesmo o mineiro Alberto Santos Dumont, que também aplicou as idéias de Julio Cezar em seus balões, teve a primazia de suas realizações questionada diante dos irmãos Orville e Wilbur Wright. Embora seja inconteste que foi Santos Dumont quem projetou e pilotou o primeiro engenho "mais pesado que o ar" a erguer-se do solo por meio de um motor próprio, realizando um voo ao longo de 60 metros, em 23 de outubro de 1906. Julio Cezar Ribeiro de Souza foi o homem que, após vários anos de minuciosas observações e exaustivos estudos do voo dos pássaros, estabeleceu as bases da aeronáutica e aerodinâmica modernas, ao propor, em 1880, fundamentado em uma teoria de navegação aérea, o tipo fusiforme dissimétrico ou assimétrico dos balões, tendo realizado as primeiras experiências que comprovaram suas teorias em Paris, em novembro de 1881.
Poucos meses antes de sua morte, Julio Cezar deixou registrada na imprensa paraense a seguinte frase que expressa sua desilusão: "O mundo inteiro está completamente mistificado pelos felizes plagiários do meu invento, para quem, num país de economias, chovem os milhões para balões colossais do meu sistema, quando eu só tive migalhas no país dos grandes esbanjamentos, onde a ciência está completamente mistificada".

Para conhecer mais
Os principais textos escritos por Julio Cezar Ribeiro de Souza, adaptados para o português atual, podem ser encontrados no livro Memórias Sobre a Navegação Aérea, publicado pela Editora da Universidade Federal do Pará, com o patrocínio do Ministério das Comunicações por meio da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, organizado pelos professores José M. F. Bassalo, Paulo T. S. Alencar, Luís C. B. Crspino e Clodoaldo F. R. Beckmann. O livro traz também textos de Fernando M. do Amaral e de Luís C. B. Crispino.

Fonte: Scientific American Brasil