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domingo, 21 de fevereiro de 2016

Especial de Domingo

Selecionamos mais um dos excelentes textos do AEROMAGIA.
Boa leitura.
Bom domingo!

A acrobacia ensinando a engenharia
Como nasceu o CEA-309 MEHARI

Por Paulo Iscold

Parece mentira, não é? Como pode a acrobacia aérea contribuir para o ensino de engenharia? Não deveria ser ao contrário? Pois é, não foi esta a realidade que experimentamos na UFMG entre os anos de 2003 e 2009, e aqui gostaríamos de compartilhar com vocês esta história de sucesso que o Brasil vai deixar para o mundo da aviação.

Em 2002 estávamos trabalhando na oficina do Centro de Estudos Aeronáuticos da UFMG, no projeto da aeronave de corrida CEA-308, quando recebemos a visita de dois pilotos: Daniel Aninger, piloto de provas do CEA-308 e Marcos Geraldi, então instrutor de acrobacia do Aeroclube do Estado de Minas Gerais. Ambos vinham de uma série de voos no Christen Eagle do aeroclube, onde o Daniel estava se preparando melhor para o primeiro voo do CEA-308. Vendo o nosso trabalho naquela máquina de linhas elegantes, o Marcos comentou que estava pensando em trazer um kit de RV-4 para montar no Brasil e fazer acrobacias. Ouvindo aquilo, e pensando que ele estava ousando comparar o 308 com um RV-4, bravejei: Pare com isto, deixa que nós fazemos um avião acrobático aqui para você! Que ignorância, ele acreditou!

O Marcos não só acreditou como imediatamente começou a organizar um plano para viabilizar o projeto. A ideia era construirmos dois aviões, um para ele e um para um sócio que ajudaria a arcar com os custos de desenvolvimento das ferramentas para a construção dos protótipos. Não aceitamos esta proposta (tendo em vista a natureza acadêmica do CEA), e, com o intuito de viabilizar, aceitamos fabricar um avião completo e mais um kit. Já naquela semana contratamos alguns alunos como bolsistas para ajudar no projeto e o Marcos já saiu em busca de parceiros.

Em novembro de 2002, juntamente com o Marcos Geraldi, fui para o meu primeiro campeonato de acrobacias aéreas, na cidade de Americana-SP. Apesar da muita chuva, fiquei encantado com o ambiente (até porque qualquer paradinha na chuva era motivo para colocar os aviões no ar). Diferentemente do ambiente de outras competições aeronáuticas no Brasil (como o voo-a-vela), o campeonato de acrobacias era o mesmo que uma grande família, todos felizes, se ajudando, dando risadas, e voando! Naquele final de semana tive certeza que o projeto Mehari (não me lembro se lá ele já tinha este nome) seria um sucesso!

O problema é que a distância entre um sonho e a realidade neste tipo de projeto é igual a muitos dias de trabalho, suor e grandes dificuldades. O Mehari seria o primeiro avião acrobático ilimitado projetado no Brasil. O primeiro avião brasileiro a sofrer mais de 10g’s. O primeiro avião brasileiro a ter mais de 360° por segundo de razão de rolamento. Enfim, o primeiro em muitas coisas e por isso teríamos que desbravar caminhos que nunca antes haviam sido pisados por brasileiros. Naquela época tínhamos dois grandes apoios: Cláudio Barros, meu inesquecível mestre, e Joseph Kovacs (o inesquecível mestre do meu mestre – e que dispensa maiores introduções). Naquela época o Sr. José já estava com os planos de fazer o K-55 e tinha ganhado muita experiência com a montagem do One-Design do Gilberto Cardoso e do seu filho, Otávio. Além destes gigantes do projeto aeronáutico, eu percebi que poderia contar com a inestimável ajuda de outros grandes conhecedores destas máquinas: os pilotos brasileiros de acrobacia aérea. Talvez este tenha sido sim o grande trunfo do projeto Mehari! Todos foram muito úteis, mas alguns merecem destaque: Carlos Cardoso, Luiz Eduardo Fabiano, Luiz Guilherme Richieri, Adilson Kindlemann, Gunar Armin, Fabio Moritz e Fernando Paes de Barros, pois deram dicas que tornaram o Mehari um puro-sangue da acrobacia.

Até março de 2003 nos dedicamos integralmente ao projeto do Mehari. Vários alunos participaram da sua concepção. Desde o projeto aerodinâmico, passando pelo projeto dos perfis, a concepção estrutural, o dimensionamento da estrutura e a execução dos desenhos de fabricação. Sendo o primeiro projeto do CEA-UFMG totalmente financiado pela iniciativa privada, tivemos que elevar o nível de qualidade dos trabalhos para garantir, acima de qualquer dificuldade, o sucesso do projeto. Com isto os alunos puderam experimentar na fase de projeto o uso de novas tecnologias e técnicas que, com certeza, contribuíram para a sua formação acadêmica.

INÍCIO DA CONSTRUÇÃO
Em março de 2003, demos início a fabricação do protótipo, a qual se estenderia por seis anos. O parceiro que o Marcos encontrou foi o saudoso César Almeida Albuquerque (Cesinha). Uma pessoa de coração impar, alegre, amigo e visionário. Tivemos muitos momentos felizes juntos, sempre dando risada. Infelizmente, no meio do caminho, o César partiu, e o projeto Mehari sofreu. Sofreu porque não sabíamos se queríamos ou deveríamos seguir em frente. Tanto eu, quanto meus alunos, e também o Marcos, ficamos na dúvida. Com o tempo a dor da perda do Cesar foi passando e percebemos que deveríamos continuar, sobretudo para buscar o sonho de ter, no Brasil, um avião ilimitado de acrobacia. Com isto, o sonho passava a se transformar em uma responsabilidade.

Ao longo da construção do Mehari vários alunos tiveram a oportunidade de deixar sua contribuição. Optamos por fabricar um conjunto de asa e empenagem em madeira, para podermos baratear o projeto e testar alguns conceitos. Em caso de sucesso, usaríamos esta asa como modelo para uma asa em materiais compostos (carbono). A fuselagem (as duas) foram fabricadas em tubos de aço 4130, soldadas com processo TIG. O sistema de comando recebeu especial atenção para poder ser forte o bastante para as manobras ilimitadas e leve o suficiente para não afetar a qualidade de voo do avião. A ergonomia foi estudada em vistas de proporcionar ao piloto o máximo de conforto durante as manobras de alta aceleração G, mas ao mesmo tempo o posicioná-lo mais próximo possível do centro de gravidade da aeronave e com o menor espaço possível (para manter o avião pequeno).

O motor e hélice, especialmente importados para o Mehari, foram a escolha mais moderna disponível no mercado naquela época. A proposta do Mehari, um avião acrobático ilimitado de baixo custo (quatro cilindros) desenvolvido por alunos, era tão chamativa que, para o motor, hélice, e outros equipamentos recebemos apoio incondicional de empresas estrangeiras. Lycoming, MT-Propeller e Becker Avionics foram empresas que acreditaram na nossa proposta. No Brasil merece ser destacada a FIBRAER que forneceu todo o hardware aeronáutico para que o projeto tivesse a melhor qualidade de fabricação possível.

O PRIMEIRO VOO
Então, em 2009, após seis anos de fabricação (com paradas em virtude da perda do César Albuquerque e devido a obras na UFMG), estávamos prontos para o primeiro voo. Não é preciso descrever aqui, nem é possível, toda a ansiedade que cerca este momento. Para o piloto deve ser um momento único, onde medo e regozijo se misturam, mas para a equipe de engenharia, e sobretudo para o professor orientador, é um momento assustador, onde o medo toma todo o lugar! O grande problema para nós que ficamos no solo é que não há mais nada a ser feito. Tudo que tínhamos para fazer já deve estar feito e se erramos em algo, pouco podemos ajudar. Para os nossos alunos este é um momento único na sua formação, justamente porque podemos ensinar a eles como se comportar nestes casos. Sempre digo que não somos físicos ou matemáticos, por isto não temos a resposta exata para tudo. Ser engenheiro é saber achar uma solução ótima, de mínimo custo, para um dado problema. Neste caso, nosso problema é a pergunta que vêm do piloto: “Posso decolar?”.

Com esta descrição vocês podem estar achando que somos loucos, mas não, é justamente neste momento que a “ciência” da engenharia deve entrar em ação. Por melhor que tenhamos feito o nosso trabalho a resposta a pergunta do nosso piloto de prova nunca deve ser um simples “sim”. Junto com a permissão de decolar é preciso que haja uma análise crítica e cuidadosa dos riscos envolvidos, dos procedimentos de emergência e de segurança, e das funções de cada um que estão ali para este momento. Sabemos que várias coisas podem dar erradas e por isso é necessário que sejamos realistas, é necessário que exponhamos isto para o piloto de prova e junto dele criemos uma sequencia de procedimentos que evitarão estes riscos ou que reverterão uma situação não desejada. Ser realista é o melhor conselho para este momento!

Vocês hão de concordar comigo que para um estudante de engenharia este é um momento único, onde o que ele pode aprender é algo simplesmente impossível de se aprender em sala de aula.

Foi dentro de um contexto como este que o Mehari decolou do aeroporto municipal de Conselheiro Lafaiete-MG, em 5 de agosto de 2009. É claro que alguns dos procedimentos de emergência tiveram que ser usados! Particularmente, ele saiu do chão exigindo força para a frente no manche o que criou uma situação desconfortável de qualidade de voo. Este problema foi em seguida solucionado com a adição de um pequeno tab fixo nos profundores. Assim, para próximos protótipos, devemos alterar décimos de grau na incidência da empenagem horizontal.

 
O presente texto foi escrito por Paulo Iscold em 2013, e após isso o Mehari participou do campeonato nacional brasileiro em 2014, quando obteve o 1º lugar na categoria Advanced. 
Acima, o Mehari no campeonato nacional de acrobacia aérea (CBA),
realizado na Academia da Força Aérea.

Atualmente o avião está baseado na cidade de Itápolis-SP, onde um segundo exemplar está sendo construído. Exceto quando mencionado, as fotos são de autoria de Josué Andrade.

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