Selecionamos mais um dos excelentes textos do AEROMAGIA.
Boa leitura.
Bom domingo!
A acrobacia ensinando a engenharia
Como nasceu o CEA-309 MEHARI
Por Paulo Iscold
Parece mentira, não é? Como pode a acrobacia aérea contribuir para o ensino de engenharia? Não deveria ser ao contrário? Pois é, não foi esta a realidade que experimentamos na UFMG entre os anos de 2003 e 2009, e aqui gostaríamos de compartilhar com vocês esta história de sucesso que o Brasil vai deixar para o mundo da aviação.
Em 2002 estávamos trabalhando na oficina do Centro de Estudos Aeronáuticos da UFMG, no projeto da aeronave de corrida CEA-308, quando recebemos a visita de dois pilotos: Daniel Aninger, piloto de provas do CEA-308 e Marcos Geraldi, então instrutor de acrobacia do Aeroclube do Estado de Minas Gerais. Ambos vinham de uma série de voos no Christen Eagle do aeroclube, onde o Daniel estava se preparando melhor para o primeiro voo do CEA-308. Vendo o nosso trabalho naquela máquina de linhas elegantes, o Marcos comentou que estava pensando em trazer um kit de RV-4 para montar no Brasil e fazer acrobacias. Ouvindo aquilo, e pensando que ele estava ousando comparar o 308 com um RV-4, bravejei: Pare com isto, deixa que nós fazemos um avião acrobático aqui para você! Que ignorância, ele acreditou!
O Marcos não só acreditou como imediatamente começou a organizar um plano para viabilizar o projeto. A ideia era construirmos dois aviões, um para ele e um para um sócio que ajudaria a arcar com os custos de desenvolvimento das ferramentas para a construção dos protótipos. Não aceitamos esta proposta (tendo em vista a natureza acadêmica do CEA), e, com o intuito de viabilizar, aceitamos fabricar um avião completo e mais um kit. Já naquela semana contratamos alguns alunos como bolsistas para ajudar no projeto e o Marcos já saiu em busca de parceiros.
Em novembro de 2002, juntamente com o Marcos Geraldi, fui para o meu primeiro campeonato de acrobacias aéreas, na cidade de Americana-SP. Apesar da muita chuva, fiquei encantado com o ambiente (até porque qualquer paradinha na chuva era motivo para colocar os aviões no ar). Diferentemente do ambiente de outras competições aeronáuticas no Brasil (como o voo-a-vela), o campeonato de acrobacias era o mesmo que uma grande família, todos felizes, se ajudando, dando risadas, e voando! Naquele final de semana tive certeza que o projeto Mehari (não me lembro se lá ele já tinha este nome) seria um sucesso!
O problema é que a distância entre um sonho e a realidade neste tipo de projeto é igual a muitos dias de trabalho, suor e grandes dificuldades. O Mehari seria o primeiro avião acrobático ilimitado projetado no Brasil. O primeiro avião brasileiro a sofrer mais de 10g’s. O primeiro avião brasileiro a ter mais de 360° por segundo de razão de rolamento. Enfim, o primeiro em muitas coisas e por isso teríamos que desbravar caminhos que nunca antes haviam sido pisados por brasileiros. Naquela época tínhamos dois grandes apoios: Cláudio Barros, meu inesquecível mestre, e Joseph Kovacs (o inesquecível mestre do meu mestre – e que dispensa maiores introduções). Naquela época o Sr. José já estava com os planos de fazer o K-55 e tinha ganhado muita experiência com a montagem do One-Design do Gilberto Cardoso e do seu filho, Otávio. Além destes gigantes do projeto aeronáutico, eu percebi que poderia contar com a inestimável ajuda de outros grandes conhecedores destas máquinas: os pilotos brasileiros de acrobacia aérea. Talvez este tenha sido sim o grande trunfo do projeto Mehari! Todos foram muito úteis, mas alguns merecem destaque: Carlos Cardoso, Luiz Eduardo Fabiano, Luiz Guilherme Richieri, Adilson Kindlemann, Gunar Armin, Fabio Moritz e Fernando Paes de Barros, pois deram dicas que tornaram o Mehari um puro-sangue da acrobacia.
Até março de 2003 nos dedicamos integralmente ao projeto do Mehari. Vários alunos participaram da sua concepção. Desde o projeto aerodinâmico, passando pelo projeto dos perfis, a concepção estrutural, o dimensionamento da estrutura e a execução dos desenhos de fabricação. Sendo o primeiro projeto do CEA-UFMG totalmente financiado pela iniciativa privada, tivemos que elevar o nível de qualidade dos trabalhos para garantir, acima de qualquer dificuldade, o sucesso do projeto. Com isto os alunos puderam experimentar na fase de projeto o uso de novas tecnologias e técnicas que, com certeza, contribuíram para a sua formação acadêmica.
Em 2002 estávamos trabalhando na oficina do Centro de Estudos Aeronáuticos da UFMG, no projeto da aeronave de corrida CEA-308, quando recebemos a visita de dois pilotos: Daniel Aninger, piloto de provas do CEA-308 e Marcos Geraldi, então instrutor de acrobacia do Aeroclube do Estado de Minas Gerais. Ambos vinham de uma série de voos no Christen Eagle do aeroclube, onde o Daniel estava se preparando melhor para o primeiro voo do CEA-308. Vendo o nosso trabalho naquela máquina de linhas elegantes, o Marcos comentou que estava pensando em trazer um kit de RV-4 para montar no Brasil e fazer acrobacias. Ouvindo aquilo, e pensando que ele estava ousando comparar o 308 com um RV-4, bravejei: Pare com isto, deixa que nós fazemos um avião acrobático aqui para você! Que ignorância, ele acreditou!
O Marcos não só acreditou como imediatamente começou a organizar um plano para viabilizar o projeto. A ideia era construirmos dois aviões, um para ele e um para um sócio que ajudaria a arcar com os custos de desenvolvimento das ferramentas para a construção dos protótipos. Não aceitamos esta proposta (tendo em vista a natureza acadêmica do CEA), e, com o intuito de viabilizar, aceitamos fabricar um avião completo e mais um kit. Já naquela semana contratamos alguns alunos como bolsistas para ajudar no projeto e o Marcos já saiu em busca de parceiros.
Em novembro de 2002, juntamente com o Marcos Geraldi, fui para o meu primeiro campeonato de acrobacias aéreas, na cidade de Americana-SP. Apesar da muita chuva, fiquei encantado com o ambiente (até porque qualquer paradinha na chuva era motivo para colocar os aviões no ar). Diferentemente do ambiente de outras competições aeronáuticas no Brasil (como o voo-a-vela), o campeonato de acrobacias era o mesmo que uma grande família, todos felizes, se ajudando, dando risadas, e voando! Naquele final de semana tive certeza que o projeto Mehari (não me lembro se lá ele já tinha este nome) seria um sucesso!
O problema é que a distância entre um sonho e a realidade neste tipo de projeto é igual a muitos dias de trabalho, suor e grandes dificuldades. O Mehari seria o primeiro avião acrobático ilimitado projetado no Brasil. O primeiro avião brasileiro a sofrer mais de 10g’s. O primeiro avião brasileiro a ter mais de 360° por segundo de razão de rolamento. Enfim, o primeiro em muitas coisas e por isso teríamos que desbravar caminhos que nunca antes haviam sido pisados por brasileiros. Naquela época tínhamos dois grandes apoios: Cláudio Barros, meu inesquecível mestre, e Joseph Kovacs (o inesquecível mestre do meu mestre – e que dispensa maiores introduções). Naquela época o Sr. José já estava com os planos de fazer o K-55 e tinha ganhado muita experiência com a montagem do One-Design do Gilberto Cardoso e do seu filho, Otávio. Além destes gigantes do projeto aeronáutico, eu percebi que poderia contar com a inestimável ajuda de outros grandes conhecedores destas máquinas: os pilotos brasileiros de acrobacia aérea. Talvez este tenha sido sim o grande trunfo do projeto Mehari! Todos foram muito úteis, mas alguns merecem destaque: Carlos Cardoso, Luiz Eduardo Fabiano, Luiz Guilherme Richieri, Adilson Kindlemann, Gunar Armin, Fabio Moritz e Fernando Paes de Barros, pois deram dicas que tornaram o Mehari um puro-sangue da acrobacia.
Até março de 2003 nos dedicamos integralmente ao projeto do Mehari. Vários alunos participaram da sua concepção. Desde o projeto aerodinâmico, passando pelo projeto dos perfis, a concepção estrutural, o dimensionamento da estrutura e a execução dos desenhos de fabricação. Sendo o primeiro projeto do CEA-UFMG totalmente financiado pela iniciativa privada, tivemos que elevar o nível de qualidade dos trabalhos para garantir, acima de qualquer dificuldade, o sucesso do projeto. Com isto os alunos puderam experimentar na fase de projeto o uso de novas tecnologias e técnicas que, com certeza, contribuíram para a sua formação acadêmica.
INÍCIO DA CONSTRUÇÃO
Em março de 2003, demos início a fabricação do protótipo, a qual se estenderia por seis anos. O parceiro que o Marcos encontrou foi o saudoso César Almeida Albuquerque (Cesinha). Uma pessoa de coração impar, alegre, amigo e visionário. Tivemos muitos momentos felizes juntos, sempre dando risada. Infelizmente, no meio do caminho, o César partiu, e o projeto Mehari sofreu. Sofreu porque não sabíamos se queríamos ou deveríamos seguir em frente. Tanto eu, quanto meus alunos, e também o Marcos, ficamos na dúvida. Com o tempo a dor da perda do Cesar foi passando e percebemos que deveríamos continuar, sobretudo para buscar o sonho de ter, no Brasil, um avião ilimitado de acrobacia. Com isto, o sonho passava a se transformar em uma responsabilidade.
Ao longo da construção do Mehari vários alunos tiveram a oportunidade de deixar sua contribuição. Optamos por fabricar um conjunto de asa e empenagem em madeira, para podermos baratear o projeto e testar alguns conceitos. Em caso de sucesso, usaríamos esta asa como modelo para uma asa em materiais compostos (carbono). A fuselagem (as duas) foram fabricadas em tubos de aço 4130, soldadas com processo TIG. O sistema de comando recebeu especial atenção para poder ser forte o bastante para as manobras ilimitadas e leve o suficiente para não afetar a qualidade de voo do avião. A ergonomia foi estudada em vistas de proporcionar ao piloto o máximo de conforto durante as manobras de alta aceleração G, mas ao mesmo tempo o posicioná-lo mais próximo possível do centro de gravidade da aeronave e com o menor espaço possível (para manter o avião pequeno).
O motor e hélice, especialmente importados para o Mehari, foram a escolha mais moderna disponível no mercado naquela época. A proposta do Mehari, um avião acrobático ilimitado de baixo custo (quatro cilindros) desenvolvido por alunos, era tão chamativa que, para o motor, hélice, e outros equipamentos recebemos apoio incondicional de empresas estrangeiras. Lycoming, MT-Propeller e Becker Avionics foram empresas que acreditaram na nossa proposta. No Brasil merece ser destacada a FIBRAER que forneceu todo o hardware aeronáutico para que o projeto tivesse a melhor qualidade de fabricação possível.
Ao longo da construção do Mehari vários alunos tiveram a oportunidade de deixar sua contribuição. Optamos por fabricar um conjunto de asa e empenagem em madeira, para podermos baratear o projeto e testar alguns conceitos. Em caso de sucesso, usaríamos esta asa como modelo para uma asa em materiais compostos (carbono). A fuselagem (as duas) foram fabricadas em tubos de aço 4130, soldadas com processo TIG. O sistema de comando recebeu especial atenção para poder ser forte o bastante para as manobras ilimitadas e leve o suficiente para não afetar a qualidade de voo do avião. A ergonomia foi estudada em vistas de proporcionar ao piloto o máximo de conforto durante as manobras de alta aceleração G, mas ao mesmo tempo o posicioná-lo mais próximo possível do centro de gravidade da aeronave e com o menor espaço possível (para manter o avião pequeno).
O motor e hélice, especialmente importados para o Mehari, foram a escolha mais moderna disponível no mercado naquela época. A proposta do Mehari, um avião acrobático ilimitado de baixo custo (quatro cilindros) desenvolvido por alunos, era tão chamativa que, para o motor, hélice, e outros equipamentos recebemos apoio incondicional de empresas estrangeiras. Lycoming, MT-Propeller e Becker Avionics foram empresas que acreditaram na nossa proposta. No Brasil merece ser destacada a FIBRAER que forneceu todo o hardware aeronáutico para que o projeto tivesse a melhor qualidade de fabricação possível.
O PRIMEIRO VOO
Então, em 2009, após seis anos de fabricação (com paradas em virtude da perda do César Albuquerque e devido a obras na UFMG), estávamos prontos para o primeiro voo. Não é preciso descrever aqui, nem é possível, toda a ansiedade que cerca este momento. Para o piloto deve ser um momento único, onde medo e regozijo se misturam, mas para a equipe de engenharia, e sobretudo para o professor orientador, é um momento assustador, onde o medo toma todo o lugar! O grande problema para nós que ficamos no solo é que não há mais nada a ser feito. Tudo que tínhamos para fazer já deve estar feito e se erramos em algo, pouco podemos ajudar. Para os nossos alunos este é um momento único na sua formação, justamente porque podemos ensinar a eles como se comportar nestes casos. Sempre digo que não somos físicos ou matemáticos, por isto não temos a resposta exata para tudo. Ser engenheiro é saber achar uma solução ótima, de mínimo custo, para um dado problema. Neste caso, nosso problema é a pergunta que vêm do piloto: “Posso decolar?”.
Com esta descrição vocês podem estar achando que somos loucos, mas não, é justamente neste momento que a “ciência” da engenharia deve entrar em ação. Por melhor que tenhamos feito o nosso trabalho a resposta a pergunta do nosso piloto de prova nunca deve ser um simples “sim”. Junto com a permissão de decolar é preciso que haja uma análise crítica e cuidadosa dos riscos envolvidos, dos procedimentos de emergência e de segurança, e das funções de cada um que estão ali para este momento. Sabemos que várias coisas podem dar erradas e por isso é necessário que sejamos realistas, é necessário que exponhamos isto para o piloto de prova e junto dele criemos uma sequencia de procedimentos que evitarão estes riscos ou que reverterão uma situação não desejada. Ser realista é o melhor conselho para este momento!
Vocês hão de concordar comigo que para um estudante de engenharia este é um momento único, onde o que ele pode aprender é algo simplesmente impossível de se aprender em sala de aula.
Foi dentro de um contexto como este que o Mehari decolou do aeroporto municipal de Conselheiro Lafaiete-MG, em 5 de agosto de 2009. É claro que alguns dos procedimentos de emergência tiveram que ser usados! Particularmente, ele saiu do chão exigindo força para a frente no manche o que criou uma situação desconfortável de qualidade de voo. Este problema foi em seguida solucionado com a adição de um pequeno tab fixo nos profundores. Assim, para próximos protótipos, devemos alterar décimos de grau na incidência da empenagem horizontal.
Vocês hão de concordar comigo que para um estudante de engenharia este é um momento único, onde o que ele pode aprender é algo simplesmente impossível de se aprender em sala de aula.
Foi dentro de um contexto como este que o Mehari decolou do aeroporto municipal de Conselheiro Lafaiete-MG, em 5 de agosto de 2009. É claro que alguns dos procedimentos de emergência tiveram que ser usados! Particularmente, ele saiu do chão exigindo força para a frente no manche o que criou uma situação desconfortável de qualidade de voo. Este problema foi em seguida solucionado com a adição de um pequeno tab fixo nos profundores. Assim, para próximos protótipos, devemos alterar décimos de grau na incidência da empenagem horizontal.
O presente texto foi escrito por Paulo Iscold em 2013, e após isso o Mehari participou do campeonato nacional brasileiro em 2014, quando obteve o 1º lugar na categoria Advanced.
Acima, o Mehari no campeonato nacional de acrobacia aérea (CBA), realizado na Academia da Força Aérea. |
Atualmente o avião está baseado na cidade de Itápolis-SP, onde um segundo exemplar está sendo construído. Exceto quando mencionado, as fotos são de autoria de Josué Andrade.
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