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domingo, 10 de outubro de 2021

Especial de Domingo

Confira mais uma bela história nas asas da Força Aérea Brasileira.
Boa leitura.
Bom domingo!

O dia em que um Hércules da FAB ficou sem combustível apoiando refugiados angolanos em alto-mar
Texto de Sérgio Cabral Cavalcanti

Lembro-me de uma missão de Hércules C130, na qual o objetivo era encontrar refugiados no Oceano Atlântico, de civis ao mar de Angola [em razão da guerra civil angolana]. Como faz muito tempo, lembro-me de poucos detalhes. Mas, entre eles, que voavam sobre o Atlântico por onze horas seguidas, nos limites da autonomia dos C130-E, com dois tanques extras e mais alguns dentro do próprio avião. Em um determinado momento, já com dois motores embandeirados e retornando para o continente avistaram um ponto de fumaça distante no mar.

Combustível
Lourival Pessoa Cavalcanti

O combustível não dava para ir até o ponto identificado, ou melhor, dava, mas não haveria combustível para a volta. Consultado o MAv (o mecânico da aeronave), confirmado: não haveria combustível de volta se eles gastassem mais 5 ou 10 minutos de voo. Então o Cavuca (um dos primeiros a completar 1.000 horas de Hércules no Brasil e entrar para o clube “1000-Hours”; ainda guardo o broche da Lockheed) pergunta à tripulação:
- Todos sabem nadar?
- Todos de papo-amarelo (era o colete salva-vidas)?
- Repelente de tubarão disponível?
- Vamos votar.
Votação concluída, então rumo ao ponto identificado. Tinham feito a seguinte opção: confirmar se se tratavam dos refugiados; em caso positivo, vetorizá-los para as corvetas-tartarugas da Marinha (desculpem, mas comparadas a um C130 a 500 Km/h, tartaruga é um elogio corajoso para esses desbravadores da Marinha, que adentravam às adversidades com remanescentes da 2ª Guerra Mundial, à época). Uma vez confirmadas as posições, tentariam voltar para a Base Aérea de Recife, porém já certos que poderiam cair no mar, tentavam optar pelos arredores de Fernando de Noronha ou algo assim, uma região infestada de tubarões.

O encontro dos refugiados
Em voo muito baixo, encontraram centenas, dos milhares de refugiados que fugiram da guerra civil angolana. E lembro que meu pai falava que muitos deles estavam há semanas no mar, não em barcos ou botes, mas sim em caixas d’água; sim fugiram com o que dava para fugir, e ficaram nas mãos das correntezas do Atlântico. Sem combustível e sem como ajudar, decidiram, em voo rasante, jogar tudo que tinham na aeronave - de colete salva-vidas (que estavam usando) aos lanches das missões de 13 horas de voo - para os refugiados. Lembro-me de uma passagem na qual eles testemunharam tubarões atacando tudo que caía ao redor. Então, localizados os refugiados, passada a vetorizacão para a Marinha, agora era hora de voltar; e rezar para a correnteza não espalhar os refugiados e o vento a favor trazê-los de volta para perto da costa brasileira. O Hércules C130-E da FAB (para missões de salvamento, que era o objetivo do 1º/6º GAV REC/SAR) possuía uma espécie de “bote-salva-vida” nas asas, pelo que lembro, e essa seria a única esperança para o pouso no mar no retorno da missão.

O pouso do Hércules C130
Não me lembro de muitos detalhes. Lembro que aproveitaram os ventos para ganhar altitude, jogaram ao mar todo e qualquer peso extra. Acredite, até sua Colt 45 foi para o fundo do oceano. Tudo, lembro da frase, tudo mesmo, até o revestimento do avião eles jogaram ao mar. Cada grama fazia diferença. Algumas missões de Busca e Salvamento às vezes tinham paraquedas, mas nesse caso, não levaram paraquedas, para caber mais alguns galões de querosene. E já no planeio, apenas com um motor funcionando, colocaram BARF [Base Aérea de Recife] na proa, creio eu para uma longa final. A decisão era provocar o pouso no mar ou tentar o pouso em pista, mas com o risco de cair na cidade causando grandes estragos. Decisão tomada, todos tinham filhos, famílias, alguns arrimos de família, e pouso na pista foi a opção escolhida. Lembro que meu pai (Lourival Pessoa Cavalcanti), que me viciou em café com essa história, pega sua última bala de café no bolso lateral do macacão laranja que os tripulantes da REC/SAR (Busca e Salvamento) usavam, com todo o painel do C130-E piscando em vermelho e algumas poucas luzes ainda em amarelo, ativam a única manete que responderia a algum comando de potência. Potência máxima no único Pratt & Withney de 4.000 libras funcionando, luzes da pista à frente, meio entardecer, lusco-fusco como eles chamam, e depois lembro do meu pai falando que não sabia se estava sonhando ou se aquela cena era realidade.

Chegada
Lourival Pessoa Cavalcanti

- Torre Recife - bem vindo de volta à casa C130 2459.
- Aqui Solo Recife - Por que demoraram? A comida está esfriando.
- 2459, estamos parados na pista, quatro motores parados; solicitamos pushback, dispensando bombeiros. Sem combustível para o taxiamento.
- 2459 solicita contato do Solo com grupamento Lira (Lira era uma churrascaria botequim que ficava na cabeceira da pista), solicitando o fornecimento de 11 unidades de abastecimento para esta tripulação (eram 11 churrascos de carne de sol).
- Solo Recife confirmando; entendido alto e claro. Parabéns Salvadores.

Na noite seguinte, assistiram pela televisão o desembarque dos refugiados, se não me engano em Fortaleza e a tripulação foi dar uma caminhada no calçadão de Boa Viagem e agradecer a Deus por estarem vivos, graças à performance do GORDO (apelido do C130).

Autor: Sérgio Cabral Cavalcanti, lembrando história contada por seu pai, Lourival Pessoa Cavalcanti, piloto de Hércules C130 na FAB.

Fonte: Publicado originalmente em http://sergiocabralcavalcanti.blogspot.com com o título “Histórias de filho de um milico da FAB”.

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