Da coletânea Ideias em Destaque, publicação do INCAER - Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, selecionamos e voltamos a publicar o texto a seguir, do Maj Brig Ar da Reserva Wilmar Terroso Freitas.
Boa leitura.
Bom domingo!
Um voo que passou...
uma
saudade que ficou:
a última
missão do T-6D 1545
Naquela manhã do dia 28 de fevereiro de 1975, decolaram, da Base
Aérea de Belém, para uma longa viagem, os NA T-6G FAB 1557 e
T-6D FAB 1545, pilotados pelo Tenente-Aviador Jair Kisiolar dos
Santos e por mim, tendo, como mecânico, o Segundo-Sargento Isaías.
O T-6G do líder possuía instrumentos de comunicações e navegação,
mas o T-6D – onde eu voava solo, pois o mecânico estava no avião do
líder – tinha apenas um equipamento de comunicação em VHF (Very
Hight Frequency), motivo pelo qual eu iria voando na ala do avião líder,
como sempre foi comum fazê-lo, tanto em voos de instrução, como no
emprego operacional de armamento ar-solo.
Seria um voo silencioso, pois eu não tinha um mecânico com quem
falar de vez em quando, nem sinais de radionavegação ou broadcasting
para sintonizar e ouvir, pela ausência do equipamento de navegação a
bordo do 1545.
Além disso, aquela não seria uma viagem normal, de rotina: seria
uma viagem sem volta, pois as aeronaves NA T-6 Texan estavam
sendo desativadas e deveriam ser entregues ao Parque de Material
Aeronáutico de Lagoa Santa – MG (PAMA LS), responsável pelo apoio
e pelo recolhimento daquele tipo de aeronave. Eram os dois últimos
exemplares do Primeiro Esquadrão Misto de Reconhecimento e Ataque
(1º EMRA) em seu derradeiro voo.
Aqueles dois valorosos T-6 (T-meia), agora “aposentados”, voaram
por muitos anos, sobre as coxilhas e serras do Rio Grande do Sul,
quando estavam no Primeiro Esquadrão de Reconhecimento e Ataque
(1º ERA) na Base Aérea de Canoas – RS, até serem transferidos
para a Base Aérea de Belém, ao início de 1973, como equipamentos
fundadores do 1º EMRA (Esquadrão Falcão).
Nos dois últimos anos (1973 e 1974), os T-6 sobrepujavam os
naturais ruídos e harmoniosos sons da imensa selva amazônica, com
o ronco dos seus possantes motores Pratt & Whitney R-1340-AN1
de nove cilindros radiais, arrefecidos a ar. Para o jovem Tenente, os
longos voos, geralmente a baixa altitude, sobre a floresta, tendo, como
referência, apenas o sinuoso caminho dos rios, as escassas ilhas e os
lugarejos ribeirinhos, geravam uma sensação de liberdade e de poder,
reforçados pela solidão da cabine e pela espetacular Amazônia que
“desfilava” sob as nossas asas, mostrando-se intocada, imensa e bela.
Após decolar na ala e ir para a posição de Ataque Dois¹ , já na proa
de Marabá, primeira escala prevista, e ainda sem ter a noção clara de
que aquela seria uma missão histórica em minha caderneta de voo,
refleti, “com meus botões”, que aquele T-6...
– não mais se faria ouvir estridente, no ronco do passo mínimo,
durante um barril² por fora;
– não mais abriria passagem, altivo, entre os rosados flamingos das
matas de Igapó, ou espantaria os búfalos de Marajó;
– não mais mergulharia, veloz e certeiro, como um Falcão, sobre o
seu alvo, em missões de bombardeio ou de lançamento de foguetes, no
estande de Igarapé-Açu³;
– não mais alegraria as populações ribeirinhas com suas evoluções
rasantes, às margens do Rio Mar;
– não mais teria, ou seria, um ala fiel, inseparável, como neste
derradeiro voo;
– não mais voaria... estava desativado!
Cerca de 15.000 unidades de T-6 foram produzidas, em diversas
versões, sendo 81 montadas no Brasil pela Fábrica de Aviões de Lagoa
Santa – MG, entre 1945 e 1952. Essas aeronaves voaram até 1974, nos
Esquadrões e até 1976, na Esquadrilha da Fumaça.
O 1º EMRA teve dias gloriosos com o T-6. Jamais esqueceremos
as formaturas de quatro aviões nas demonstrações aéreas em Belém.
Meus quatro amigos, “vestindo” aquela “máquina” tão conhecida e
respeitada por inúmeras gerações de “aviadores à moda antiga”,
formavam um time de vibradores e exímios pilotos, que chegou a ser
chamado de “Funorte”, uma referência muito elogiosa à Esquadrilha
da Fumaça. No seu portfolio, constavam Looping, Barril, Desfolhado,
Rasante e evoluções isoladas, com precisão profissional.
Desde o início, em Canoas, em 1971, eu estabeleci uma relação de
respeito mútuo com o T-6: ele nunca me deu uma pane de motor e eu
nunca lhe dei um “cavalo de pau”(4) Após escalas em Marabá – PA, Porto Nacional – TO e Brasília – DF,
chegamos ao Parque de Material de Lagoa Santa, em 1º de fevereiro de
1975, para a entrega das aeronaves. Terrificante – um termo forte, mas é o que eu lembro e registrei na ocasião – foi para mim e o seria também
para o 1545, se ele tivesse sentimentos, a imagem do estacionamento
de aviões recolhidos no Parque. As várias dezenas de “esqueletos”
e “mutilados” restos de T-6, estranhamente bem alinhados, como
túmulos em um cemitério a campo aberto, deram-me uma visão de
solidão e de abandono.
Imaginei o 1545 entre eles, no dia seguinte, sem nenhum destaque,
“depenado”, destituído de sua imponência, com o seu motor silenciado
para sempre... a hélice muda, parada... acredito que o 1545 choraria
com tristeza e mágoa... se ele tivesse uma alma.
Como eu tenho alma, fiquei muito triste por nós dois. Ao retornar a Belém, verifiquei, na minha caderneta de voo, que meu
primeiro voo naquela Base, em 16 de fevereiro de 1973, tinha sido no
T-6 1545, o mesmo que pilotaria dois anos depois, em derradeiro voo
para nós dois. Naquela ocasião, escrevi o texto que agora torno público.
Não mais voaria o FAB 1545; e eu não mais voaria em um NA
T-6 Texan.
1 . Situação em que a aeronave mantém sua posição relativa na ala do líder, com o dobro do afastamento, para tornar o voo mais confortável em longos deslocamentos.
2 . Tounneaux Barril: manobra na qual a aeronave gira lentamente no eixo longitudinal, traçando uma trajetória circular em relação ao horizonte natural, com meio círculo acima e outro, abaixo do horizonte. Por fora é a posição na ala quando o líder faz o tounneaux girando para o lado oposto de onde está o ala, que fará uma trajetória ligeiramente maior do que a do líder, demandando um pouco mais de potência do motor do ala.
3 . Estande concebido, especialmente, para treinamento do 1º EMRA, com trabalho dos oficiais e graduados do seu efetivo.
4. Situação durante o pouso, em que a aeronave gira sem controle, em torno de um de seus trens de pouso, geralmente, saindo pela lateral da pista.
Autor: Wilmar Terroso Freitas
Fonte: Ideias em Destaque - INCAER