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Voar é um desejo que começa em criança!

domingo, 5 de junho de 2016

Especial de Domingo

Do Ideias em Destaque, publicação do INCAER - Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, selecionamos o conteúdo de hoje.
Boa leitura.
Bom domingo!

O translado de aeronaves PT-19

Gustavo de Oliveira Borges (in memoriam)¹

Para quem gosta de histórias sobre a Força Aérea Brasileira, vou contar um episódio pouco conhecido.

Tão logo a Alemanha entrou em guerra, seus técnicos perceberam que, para o bom funcionamento dos transmissores de rádio, era essencial que os circuitos osciladores fossem controlados por cristais de rocha.

Somente os circuitos equipados com esse mineral mantinham uma oscilação estável, isto é, conseguiam gerar uma onda de transmissão em frequência invariável.

Havendo a inteligência nazista descoberto ser possível manter estável a frequência de transmissão das estações-rádio mediante o uso daqueles cristais especiais – somente disponíveis com fartura nas minas do Brasil –, decidiu o comando de submarinos alemães afundar, ao máximo, os navios cargueiros brasileiros navegando para os Estados Unidos (EUA), no pressuposto de estarem levando milhares desses cristais para o esforço de guerra daquele país.

Logo, a ordem foi afundar todos os navios, não importava a nacionalidade, para impedir a chegada dos cristais às oficinas americanas onde eram cortados e disponibilizados para a indústria.

Segundo Ivo Gastaldoni, em seu livro A última guerra romântica: memórias de um Piloto de Patrulha, foram 31 navios brasileiros afundados em águas jurisdicionais brasileiras, entre 1942 e 1944.

A FAB, então, recebeu a missão de dar cobertura aérea aos comboios que foram formados para dar proteção aos navios cargueiros, com a missão de localizar e atacar os submarinos que tocaiavam aqueles navios.

Isso foi feito a partir das bases costeiras, de Belém até Florianópolis.

Mas, para isso, era indispensável acelerar a formação dos pilotos para a FAB.

A Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (USAAF)² recebeu ordem para suprir maciçamente a FAB com aviões de instrução primária e, a seguir, com aviões mais avançados. 

O problema, então, passou a ser trazer aviões primários dos Estados Unidos, encaixotados e embarcados em cargueiros brasileiros.

Entretanto, de alguma maneira, o serviço de Inteligência alemão detectou a remessa desses aviões primários encaixotados.

Em consequência, o afundamento dos navios brasileiros, de lá partindo, passou a ser também prioritário.

Em reunião de oficiais da FAB com a USAAF, ficou decidido que o transporte desses aviões seria em voo, pilotados por oficiais da FAB.

Informados de estarem disponíveis no Texas, na base de San Antonio, 150 PT-19 passaram a embarcar dezenas de pilotos brasileiros em cargueiros da USAAF.

Desembarcados em San Antonio, os pilotos não tinham muita dificuldade para saírem imediatamente pilotando os PT-19 rumo ao Brasil.

As únicas dificuldades eram a escassez de pistas e inexistência de rádio.

Os brasileiros, ajudados por outros tantos pilotos americanos, percorreram uma fantástica rota, saindo do Texas até o Rio de Janeiro, pelo litoral.

A seguir, foram cada um negociar, no caminho, com os governos centro-americanos a ampliação de pistas e a licença para pousar e abastecer nos pontos intermediários.

Havia dois empecilhos de maior importância: o primeiro era o raio de ação dos aviões (4 horas); e o segundo era a inexistência de apoio no trecho venezuelano de La Guaira até Georgetown, na Guiana. 

O primeiro problema (falta de autonomia) foi resolvido pelos brasileiros, convencendo os americanos a colocarem um tanque auxiliar na nacele dianteira dos PT-19, ligando-o ao tanque das asas por meio de um tubinho de borracha.

Isso aumentou a autonomia em seis horas, suficientes para vencer as etapas mais longas.

Já no sobrevoo do território venezuelano, os brasileiros conseguiram melhorias e autorizações de pouso em campos precários no interior daquele país: Ciudad Bolívar e Tumeremo.

Mobilizou-se, também, a Esso para colocar tambores de gasolina em cada um dos campos previstos na rota, com bombas manuais operadas pelos próprios pilotos.

Pronta a rota, começaram os voos dos PT-19 pilotados por brasileiros, do que resultou a chegada ao Brasil, em tempo recorde, de 147 aviões (três se perderam em acidentes de pouso e decolagem). 

Porém todos os pilotos encontraram os campos previstos, meios e modos de contornar a falta de informação meteorológica e de radiocomunicações.

Para se ter uma ideia da extensão do problema, consumimos de 15 a 30 dias para efetuar o voo completo, agrupados em esquadrilhas de cinco aparelhos, comandadas por capitães ou majores experimentados.

Operação semelhante fez a base de Belém, usando aviões PBY Catalina, transportando cristais e borracha do interior da Amazônia.

Graças a esse esforço, durante toda a guerra, a USAAF dispôs de transmissão – controlada por cristais brasileiros – e fartura de pneus.

Outro ponto interessante de recordar era que os voos, dos EUA até Natal e Recife, eram efetuados predominantemente contra os ventos alísios, o que reduzia substancialmente o raio de ação dos PT-19.

Concluída a entrega dos PT-19, os EUA comunicou-nos que haviam sido cedidos, também, uma ou duas dezenas de T-6 Texan; porém, por ser modelo mais avançado, eles seriam pilotados por americanos.

Sem a experiência de voo em regiões inóspitas, sem rádio e sem mapas, metade dos T-6 não chegaram e, para substituir os perdidos, a FAB enviou um grande número de pilotos que, ao longo da guerra e depois dela, trouxeram dezenas de T-6 Texan, B-25 Mitchell, P2V-5 Neptune, L-18 Lodestar etc., elevando o prestígio dos pilotos brasileiros perante os americanos.

Mas isso é outra história...

Autor: Gustavo de Oliveira Borges (in memoriam)¹

Fonte texto: Ideias em Destaque - INCAER - Edição nº 46 - Jul/Dez 2015

Foto: Aeromagazine

Saiba mais: Um clássico treinador - Aeromagazine

¹Artigo enviado por carta, em 2012.

²A Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) ainda não tinha sido criada. 

O Coronel-Aviador Gustavo Eugênio de Oliveira Borges ingressou na Escola Naval, como Aspirante, em 21 de março de 1939. Em maio de 1941, com a fusão das aviações militar e naval, foi matriculado na Escola de Aeronáutica, no Campo dos Afonsos. Formou-se Aspirante-a-Oficial Aviador em 30 de setembro de 1942. Foi instrutor da Escola de Aeronáutica e atuou na Batalha do Atlântico, em missões de cobertura marítima de comboios navais. Participou da Diretoria de Rotas Aéreas e foi um dos responsáveis pela modernização das comunicações aéreas e da proteção ao voo. Na reserva, foi Secretário de Segurança Pública do Governo Carlos Lacerda e presidiu o Departamento de Correios e Telégrafos. Escreveu três livros: Getúlio, o mar de lama; 1964, A Revolução Injustiçada e A História da Proteção ao Voo. Faleceu no Rio de Janeiro, em 3 de janeiro de 2015, aos 92 anos.