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Voar é um desejo que começa em criança!

domingo, 24 de maio de 2015

Especial de Domingo

Selecionamos síntese do texto de Alcyr Lintz Geraldo, realçando a figura de Ricardo Kirk, primeiro militar brasileiro brevetado. Vale registrar que há exatos 101 anos - um distante 24 de maio - Kirk venceu uma prova de velocidade pilotando um avião Saulnier, no Rio de Janeiro.
Boa leitura.
Bom domingo!

OS PRIMÓRDIOS DA AVIAÇÃO
Como é do conhecimento geral, no dia 23 de outubro de 1906, nosso grande patrício Alberto Santos Dumont realizou o primeiro voo do mais pesado que o ar por seus próprios meios. É evidente que algumas consequências resultaram desse fato. As nações industrializadas cuidaram de fabricar aviões. Nasceu, também, o interesse do emprego militar do novo engenho com que os homens contavam. E , em 1911,o avião teve seus passos iniciais como arma de guerra em uma contenda entre a Itália e a Turquia. Os italianos, no ano anterior, adquiriram do fabricante francês Louis Blériot alguns aviões também chamados Blériot. Essas aeronaves realizaram missões de reconhecimento (a primeira em 23 de outubro de 1911), de bombardeio (01 de novembro) e de fotografia aérea, já em 1912. Grande figura da aviação italiana nessas missões foi o capitão Carlo Piazza. A aviação não tardou em chegar ao Brasil. O voo, a princípio, era um arriscado esporte a que não ficou indiferente um tenente de infantaria do Exército, Ricardo João Kirk. Nascido em Campos, no estado do Rio de Janeiro, em 1874, foi declarado alferes em 1893 já que se matriculara na Escola Militar em 1891, e promovido ao posto de primeiro-tenente em 1898. Entusiasmado pela aviação, voou, pela primeira vez, em um avião pilotado por Roland Garros sob os auspícios da Queen Aviation Company Limited, de Nova York, empresa de demonstrações aéreas que chegara ao Rio de Janeiro com seis aviões Blériot, um Nieuport e um Demoiselle e diversos ases da aviação francesa entre os quais Garros. Após o episódio supra referido, recebeu as primeiras lições de voo, ministradas por Ernesto Darioli, piloto italiano, na região de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, e cursou a École d`Aviotion d`Ètampes, na França, tendo recebido seu brevet em 22 de outubro de 1912. Tornou-se, assim, o primeiro aviador militar brasileiro. Dedicando-se ao Aeroclube Brasileiro, dele recebeu a missão de adquirir aviões para aquela instituição. Retornou à Europa de onde regressou em 6 de abril de 1914 com as aeronaves e os sobressalentes necessários a seu funcionamento. Em 24 de maio daquele ano, foi vencedor de uma prova de velocidade realizada no Rio de Janeiro entre um avião francês, Morane Saulnier, por ele pilotado, e um outro, Blériot SIT, pilotado pelo italiano Ernesto Darioli, instrutor e grande amigo de Kirk. Os militares brasileiros, atentos ao desenvolvimento da arte bélica nas grandes nações, não deixaram de se entusiasmar ao ver o avião participando como arma de guerra durante a primeira guerra mundial.

A CAMPANHA DO CONTESTADO
Oficiais do Exército Brasileiro, dentre eles o general Setembrino de Carvalho e o tenente Ricardo Kirk, emPorto União, região do Contestado.
Criada a província do Paraná em 1853, nasceram questões de limites entre ela e a de Santa Catarina que reivindicava áreas que a primeira alegava serem suas. Esse fato, de um lado, e de outro , a construção da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande do Sul que atravessava locais onde se cultivava o produto-rei da região, a erva-mate, fizeram com que as consequências sociais e políticas daí resultantes descambassem na campanha do Contestado. Com efeito, grandes propriedades rurais surgiram e, com elas, o coronelismo. A mão de obra era composta por pessoas verdadeiramente simplórias, desprovidas de qualquer tipo de conhecimento, reduzidas a mais vultosa humildade. Mais uma vez se manifestava o velho drama que marcou a chamada República Velha: latifúndio, coronelismo, ignorância, miséria.. Adicione-se o contingente de arrivistas que chegou ao local à vista da construção da estrada de ferro. Destarte, instala-se o império da força, da violência, do "prélio terrível das armas" para solucionar os mínimos conflitos. A população trabalhadora representava grande caldo de cultura para o fanatismo. Assim, surgiu na região em 1911, um cidadão que se intitulava Monge José Maria, que fora soldado do Exército e desertara da Força Pública do Paraná. Apresentava-se como irmão de outra figura mística que andara pelo local, pelos idos de 1882, com discurso religioso e realização de milagres relativos a curas de enfermidades. Protegido a princípio por um troço de doze seguranças, o número destes foi aumentando consideravelmente o que bafejou José Maria com as lideranças política e militar O ano de 1912 vem encontrar José Maria estacionado em Taquaruçu, próximo à cidade catarinense de Curitibanos. Perseguido pela Força Publica de Santa Catarina, estabelece-se em Irani, no território do Paraná que o combate com seus recursos policiais e requer o auxílio do Exército. Atendido pela Força Terrestre, travam-se entre ela, a Força Pública paranaense e a força de José Maria, os chamados quadros santos, significativos combates como os de Irani, Taquaruçu e Caraguatá, em que esses foram vencedores Os seguidores de José Maria, dispondo de maior número de combatentes e do conhecimento profundo da região, emboscavam com frequência seus inimigos do que resultavam perdas humanas em suas fileiras, por morte ou deserção, e abandono de material bélico o que trazia maiores recursos aos revoltosos. Na luta de Irani, morre o monge José Maria. Guia a turba uma Joana D´Arc cabocla, a Virgem Maria Rosa, e os agora seus comandados se estendem por áreas cada vez maiores. È curialmente sabido que o homem não combate sem aqueles recursos fundamentais a sua sobrevivência como ser humano. Não havendo entre os quadros santos sequer a mínima noção de Logística, partem eles ao saque em vista do suprimento mais fundamental.

O EMPREGO DA AVIAÇÃO
Os militares brasileiros, atentos ao desenvolvimento da arte bélica nas grandes nações, não deixaram de se entusiasmar ao ver o avião alfabetizando-se como arma de guerra no conflito entre a Itália e a Turquia, como foi visto retro. E realizando, como tal, seu curso primário durante a primeira guerra mundial. Destarte, em abril de 1914, o general Carlos de Mesquita, comandante das tropas legalistas no Contestado comunicou ao Ministro da Guerra, general Vespasiano Gonçalves de Albuquerque e Silva, a oferta gratuita de seus serviços, que fizera o aviador Cícero Marques, ex-instrutor e um dos primeiros responsáveis pela Escola de Aviação da Força Pública do Estado de São Paulo, fundada através da Lei 1395A, de 17 de dezembro de 1913, quando presidia aquela unidade federativa o Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves Para combater os sertanejos amotinados, ele pedira apenas um avião da Escola Brasileira de Aviação já que o motor da aeronave que possuía era insuficiente para as missões que teria de desempenhar. O oferecimento não foi aceito. Entretanto, em 12 de setembro de 1914, assumiu o comando da força federal o general Fernando Setembrino de Carvalho. E, quatro dias depois, solicitou ao general Vespasiano que colocasse à sua disposição o tenente Ricardo Kirk, com os meios precisos ao desempenho das missões que lhe caberiam, a quem, segundo suas palavras em relatório dirigido ao ministro da Guerra: "tocaria a primazia de inaugurar na América, em operações de guerra, o delicado serviço de explorações aéreas." E por que o fazia? Ainda, a teor do documento retro falado, porque "...era preciso reconhecer. Era preciso assinalar a existência e posição dos redutos, operação facílima para aviadores adestrados e valentes." O ministro da Guerra, o mesmo que meses antes negara o pedido do general Carlos de Mesquita, resolve aceder ao pedido do general Setembrino e, assim, o primeiro-tenente Ricardo Kirk foi designado, juntamente com seu instrutor e amigo Ernesto Darioli, contratado pela União Federal, para missões no teatro de operações do Contestado. Teria aquela autoridade evoluído de opinião em tão pouco tempo? Ou o general Setembrino lhe despertava maior confiança? Ou, ainda, seria porque Cícero Marques não era militar e o caso era de natureza bélica? Como tudo na vida, o fato teve prós e contras.. Efetivamente, Kirk e Darioli eram, respectivamente, Diretor Técnico e Instrutor de Voo no Aero-Clube do Brasil que emprestara também os aviões que os acompanhavam e que o governo requisitara para constituírem os meios aéreos a serem empregados naquele teatro. Com tais aeronaves, remanescentes da Escola Brasileira de Aviação, de Gino,Bucelli & Cia., que fechara as portas, pretendia o Aero-Clube fundar sua própria escola de aviação. Mas, por outro lado, significou o primeiro emprego da aviação em feitos militares não só no Brasil como também no Novo Mundo. Ricardo Kirk e Ernesto Darioli partiram do Rio de Janeiro por via férrea no dia 19 de setembro de 1914. Acompanhavam-nos quatro aviões Morane Saulnier e um Blériot que seguiam, desmontados, na mesma composição. Desafortunadamente, um Morane e o Bleriot explodem e se incendeiam. atingidos que foram por fagulhas emanadas da locomotiva que puxava o trem em que viajavam. Como se sabe, a Aviação carece de uma infra-estrutura mínima em terra para seu pleno funcionamento. Assim, ao chegar ao local da luta, Kirk, constrói pista e hangares em Porto União. Para tal, contou com soldados e a participação, indenizada, do coronel Amazonas de Araújo Marcondes. Hangares também são levantados em Canoínhas, Santa Catarina, e Rio Negro, Paraná, tudo sob o dinâmico comando de Kirk os quais, lamentavelmente, não foram utilizados. Isto posto, ainda faltavam suprimentos de material bélico. Kirk e Darioli voltam à então Capital Federal para obter, na Fábrica de Cartuchos de Realengo, granadas de obuseiro de 10,5 cm com adaptação para uso em aviões. uma vez que nada havia no Brasil de então para a realizar bombardeio aéreo. Aos albores de 1915, Kirk e Darioli retornam ao local da luta. Levam além da munição, o mecânico italiano Zanchetti Francesco. Satisfazem, assim, mais uma exigência da aviação: a presença de competentes mecânicos para manter eficiente a disponibilidade das aeronaves. A primeira atividade de voo ocorreu no dia 04 de janeiro de 1915. O voo durou mais de uma hora e ocorreu na área de Porto União e sobre os rios Iquassu e Timbó. A falta de experiência e, até mesmo, de conhecimento das coisas do ar levaram Kirk e Darioli a se enganarem quanto às condições atmosféricas em terra e no ar. Assim, em 19 de janeiro, traídos pelo forte calor que fazia em terra, partiram para uma missão de reconhecimento. A 2.000 metros de altitude, a temperatura atingira cifras negativas e os dois pilotos muito sofreram pois não levaram abrigos convenientes. No início de fevereiro, a tarefa dos aviadores foi aumentada pois às missões de reconhecimento adicionaram-se as de bombardeio Os quadros santos de José Maria, baseados em Santa Maria, resistiam tenazmente. A tropa federal sofria baixas consideráveis o que levou o general Setembrino a optar pelo bombardeio aéreo. Os aviões, para alcançar Santa Maria, teriam que atravessar as serras do Caçador (Serra do Espigão, mais tarde) e da Taquara Verde, duas muralhas de altitude muito elevada O desafio era muito para os aviadores: O mau tempo era constante, a região sujeita a brumas e escondida por cerrada mata. Kirk não desanimou. Concebeu uma rota entre os dois montes que, tendo por pontos de referências as estações ferroviárias de São João e Calmon, chegaria a Caçador. Ali, imaginou Kirk a construção de um campo de apoio bem como de outro em Tapera do Claudino, onde ficaria um depósito para as bombas. Estando tudo pronto, a primeira missão de bombardeio foi prevista para o dia 1 de março de 1915. Os três aviões foram denominados, respectivamente, general Setembrino, o maior deles, um biplace, com motor de 90 HP e asa com pára-sol, o Iguaçu e o Guarani ambos monoplace, 80 HP. Em que pese um acidente ocorrido com Kirk, no dia 25 de fevereiro, pilotando o General Setembrino, que, ao realizar um pouso forçado, capotou e ficou completamente destruído, a missão de bombardeio foi marcada para o dia 1 de março de 1915. Efetivamente, naquela data, Kirk e Darioli partiram para cumpri-la com o intervalo de dez minutos entre as duas decolagens Todavia, ainda era muito difícil, da altitude dos aviões, divisar referências no solo. Kirk idealizou que fossem feitas fogueiras e colocados lençóis brancos nas copas dos pinheiros. Tudo muito elementar, como se vê. Darioli, com pane no motor, desorientado, volta auxiliado por uma bússola e pela navegação ferrodrômica, vale dizer, seguindo a rodovia para Palmas. De Kirk, só chegaram notícias no fim da tarde por meio de um telegrama do delegado da Colônia Gomes Carneiro comunicando que o avião havia caído no quilometro 42 da estrada de Palmas àquela Colônia e que o aviador estava morto. Um carroceiro, Ricardo Pohl, afastou o que restara do avião e fincou tosca cruz no local com os seguintes dizeres (ortografia da época): "AQUI FALECEO DE DESASTRE O AVIADOR KAP RICARDO KIEQUEN - 1º DE MARÇO DE 1915." 

A Cruz do Aviador, General Carneiro, PR, 2005.
Por derradeiro, põe-se a interrogação: Por que Kirk caiu? Jamais se soube ao certo a causa do acidente. Formula-a hipótese mais razoável: o avião teria batido com a asa em uma elevação ou no alto dos pinheiros possivelmente, desorientado, tentando um pouso. Assim termina com lágrimas esta primeira página de ardor, arrojo, responsabilidade e competência (para a época), na qual se converteu num ícone para a Aviação Militar, que estava nascendo, para a de ontem, para a de hoje, para a Força Aérea Brasileira.

Tenente Ricardo João Kirk, Tua memória, sempre reverenciada pelas gerações posteriores, para as quais foste um exemplo, jamais será esquecida. Há um pedaço de ti em cada componente da Aviação Militar e da Força Aérea Brasileira, seja de quadro for. Glória , pois, a teu impoluto nome, tenente Ricardo Kirk!

Texto:
ALCYR LINTZ GERALDO
O autor é Tenente-Coronel Reformado da Aeronáutica.
Sócio efetivo do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.

Bibliografia:
WANDERLEY, Nelson Freire Lavenère - História da Força Aérea Brasileira - 2a edição - Ministério da Aeronáutica - 1974 - Rio de Janeiro.

INSTITUTO HISTÓRICO E CULTUTAL DA AERONÁUTICA - História Geral da Aeronáutica Brasileira, vol. .I - Editora Itatiaia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, 1988.

CANAVO FILHO, JOSÉ e OLIVEIRA MELO, JOSÉ DE - Asas e Glórias de São Paulo , 2ª edição - Imprensa Oficial do Estado, São Paulo. 

Saiba mais: Blog do NINJA de 8/6/10