Do Ideias em Destaque, publicação do INCAER - Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica, selecionamos o conteúdo de hoje.
Boa leitura.
Bom domingo!
O translado de aeronaves PT-19
Gustavo de Oliveira Borges (in memoriam)¹
Para quem gosta de histórias sobre a Força Aérea Brasileira, vou
contar um episódio pouco conhecido.
Tão logo a Alemanha entrou em guerra, seus técnicos perceberam
que, para o bom funcionamento dos transmissores de rádio, era essencial
que os circuitos osciladores fossem controlados por cristais de rocha.
Somente os circuitos equipados com esse mineral mantinham uma
oscilação estável, isto é, conseguiam gerar uma onda de transmissão em
frequência invariável.
Havendo a inteligência nazista descoberto ser possível manter estável
a frequência de transmissão das estações-rádio mediante o uso
daqueles cristais especiais – somente disponíveis com fartura nas minas
do Brasil –, decidiu o comando de submarinos alemães afundar, ao máximo, os navios cargueiros brasileiros navegando para os Estados Unidos
(EUA), no pressuposto de estarem levando milhares desses cristais
para o esforço de guerra daquele país.
Logo, a ordem foi afundar todos
os navios, não importava a nacionalidade, para impedir a chegada dos
cristais às oficinas americanas onde eram cortados e disponibilizados
para a indústria.
Segundo Ivo Gastaldoni, em seu livro A última guerra
romântica: memórias de um Piloto de Patrulha, foram 31 navios brasileiros
afundados em águas jurisdicionais brasileiras, entre 1942 e 1944.
A FAB, então, recebeu a missão de dar cobertura aérea aos comboios
que foram formados para dar proteção aos navios cargueiros, com a
missão de localizar e atacar os submarinos que tocaiavam aqueles navios.
Isso foi feito a partir das bases costeiras, de Belém até Florianópolis.
Mas, para isso, era indispensável acelerar a formação dos pilotos
para a FAB.
A Força Aérea do Exército dos Estados Unidos (USAAF)² recebeu ordem para suprir maciçamente a FAB com aviões de instrução
primária e, a seguir, com aviões mais avançados.
O problema, então, passou a ser trazer aviões primários dos Estados
Unidos, encaixotados e embarcados em cargueiros brasileiros.
Entretanto, de alguma maneira, o serviço de Inteligência alemão detectou
a remessa desses aviões primários encaixotados.
Em consequência, o afundamento dos navios brasileiros, de lá partindo, passou a
ser também prioritário.
Em reunião de oficiais da FAB com a USAAF, ficou decidido que
o transporte desses aviões seria em voo, pilotados por oficiais da FAB.
Informados de estarem disponíveis no Texas, na base de San Antonio,
150 PT-19 passaram a embarcar dezenas de pilotos brasileiros em cargueiros
da USAAF.
Desembarcados em San Antonio, os pilotos não tinham muita dificuldade
para saírem imediatamente pilotando os PT-19 rumo ao Brasil.
As únicas dificuldades eram a escassez de pistas e inexistência de rádio.
Os brasileiros, ajudados por outros tantos pilotos americanos, percorreram
uma fantástica rota, saindo do Texas até o Rio de Janeiro, pelo
litoral.
A seguir, foram cada um negociar, no caminho, com os governos
centro-americanos a ampliação de pistas e a licença para pousar e
abastecer nos pontos intermediários.
Havia dois empecilhos de maior
importância: o primeiro era o raio de ação dos aviões (4 horas); e o segundo
era a inexistência de apoio no trecho venezuelano de La Guaira
até Georgetown, na Guiana.
O primeiro problema (falta de autonomia) foi resolvido pelos brasileiros,
convencendo os americanos a colocarem um tanque auxiliar na
nacele dianteira dos PT-19, ligando-o ao tanque das asas por meio de
um tubinho de borracha.
Isso aumentou a autonomia em seis horas,
suficientes para vencer as etapas mais longas.
Já no sobrevoo do território venezuelano, os brasileiros conseguiram melhorias e autorizações de
pouso em campos precários no interior daquele país: Ciudad Bolívar
e Tumeremo.
Mobilizou-se, também, a Esso para colocar tambores de
gasolina em cada um dos campos previstos na rota, com bombas manuais
operadas pelos próprios pilotos.
Pronta a rota, começaram os voos dos PT-19 pilotados por brasileiros, do que resultou a chegada ao Brasil, em tempo recorde, de 147 aviões (três se perderam em acidentes de pouso e decolagem).
Porém todos os pilotos encontraram os campos previstos,
meios e modos de contornar a falta de informação meteorológica e de
radiocomunicações.
Para se ter uma ideia da extensão do problema,
consumimos de 15 a 30 dias para efetuar o voo completo, agrupados
em esquadrilhas de cinco aparelhos, comandadas por capitães ou majores
experimentados.
Operação semelhante fez a base de Belém, usando aviões PBY Catalina,
transportando cristais e borracha do interior da Amazônia.
Graças
a esse esforço, durante toda a guerra, a USAAF dispôs de transmissão
– controlada por cristais brasileiros – e fartura de pneus.
Outro ponto interessante de recordar era que os voos, dos EUA até
Natal e Recife, eram efetuados predominantemente contra os ventos
alísios, o que reduzia substancialmente o raio de ação dos PT-19.
Concluída a entrega dos PT-19, os EUA comunicou-nos que
haviam sido cedidos, também, uma ou duas dezenas de T-6 Texan;
porém, por ser modelo mais avançado, eles seriam pilotados por
americanos.
Sem a experiência de voo em regiões inóspitas, sem
rádio e sem mapas, metade dos T-6 não chegaram e, para substituir
os perdidos, a FAB enviou um grande número de pilotos que, ao
longo da guerra e depois dela, trouxeram dezenas de T-6 Texan,
B-25 Mitchell, P2V-5 Neptune, L-18 Lodestar etc., elevando o
prestígio dos pilotos brasileiros perante os americanos.
Mas isso é
outra história...
Autor: Gustavo de Oliveira Borges (in memoriam)¹
¹Artigo enviado por carta, em 2012.
²A Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) ainda não tinha sido criada.
O Coronel-Aviador Gustavo Eugênio de Oliveira Borges ingressou na Escola Naval, como Aspirante, em 21 de março de 1939. Em maio de 1941, com a fusão das aviações militar e naval, foi matriculado na Escola de Aeronáutica, no Campo dos Afonsos. Formou-se Aspirante-a-Oficial Aviador em 30 de setembro de 1942. Foi instrutor da Escola de Aeronáutica e atuou na Batalha do Atlântico, em missões de cobertura marítima de comboios navais. Participou da Diretoria de Rotas Aéreas e foi um dos responsáveis pela modernização das comunicações aéreas e da proteção ao voo. Na reserva, foi Secretário de Segurança Pública do Governo Carlos Lacerda e presidiu o Departamento de Correios e Telégrafos. Escreveu três livros: Getúlio, o mar de lama; 1964, A Revolução Injustiçada e A História da Proteção ao Voo. Faleceu no Rio de Janeiro, em 3 de janeiro de 2015, aos 92 anos.