Em Lisboa, um marco do reide Lisboa–Rio em 1922:
O primeiro voo entre a Europa e a América do Sul
No bairro do Belém, em Lisboa, na foz do rio Tejo, um marco sinaliza um importante e pioneiro voo de 1922. Em metal, um monumento retrata o avião
Santa Cruz, que fora pilotado pelos portugueses Gago Coutinho (
navegador) e Sacadura Cabral (
piloto) no reide
Lisboa-Rio de Janeiro. Em visita a Portugal, há alguns anos, voluntários do NINJA conferiram a obra que eterniza a jornada que se constituiu na primeira travessia aérea entre a Europa e a América do Sul.
Os aeronavegantes partiram de Lisboa no dia 30 de março de 1922, com um hidroavião biplano Fairey II D, que recebeu o nome de Lusitânia. Após várias escalas, o aparelho amerissou , no dia 18 de abril, nas proximidades dos Rochedos de São Pedro e São Paulo, a mil quilômetros de Natal (RN). Em razão da agitação do oceano, o avião sofreu danos e submergiu. Transportados de navio para Fernando de Noronha, Sacadura Cabral e Gago Coutinho aguardaram que o governo português lhes enviasse outro aparelho. Com o novo recurso, decolaram de Noronha para sobrevoo dos rochedos, onde haviam perdido o Lusitânia, para preservar a integridade do plano de voo histórico. Em nova pane, ficaram nove horas em alto mar aguardando o resgate. No dia 5 de junho, retomam o reide com um terceiro avião, identificado com o número 17. Após escalas em Recife, Salvador, Porto Seguro e Vitória, os pioneiros aeronavegantes chegam, em triunfo, ao Rio de janeiro, no dia 17 de junho de 1922. Contabilizaram 62 horas de voo, cobrindo oito mil quilômetros. Para tanto, empregaram instrumentos e técnicas de navegação astronômica que eles próprios conceberam para a travessia. No Brasil, o Fairey 17 foi batizado de Santa Cruz.
Reproduzimos a seguir conteúdo sobre este impressionante tema, já publicado no Blog do NINJA.
Boa leitura.
Bom domingo!
A Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul
A Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul realizou-se no período de 30 de março a 17 de junho de 1922. Constituiu um importante e inusitado acontecimento e um memorável marco histórico nos anais da navegação aérea, em nível mundial. No ano de 1922 comemorava-se o Centenário da Independência do Brasil, excelente ocasião para realizar o inolvidável voo ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, então Capital do Brasil. As seculares relações de amizade entre Portugal e o Brasil – afinidades culturais de língua, de religiosidade e de sentimentos – e as constantes tentativas para uma maior aproximação entre as duas nações irmãs despertaram em Sacadura Cabral, alma de aviador e de desbravador, o desejo incontido de tentar a viagem aérea entre Lisboa e o Rio de Janeiro, repetindo, assim, pelo ar, a viagem marítima do célebre navegador português Pedro Álvares Cabral, alguns séculos antes. Assim, a evocação do passado, com a descoberta do Brasil, em 1500, passou a ser uma referência obrigatória no quotidiano dos protagonistas e observadores da heróica viagem. O paralelismo entre as caravelas e o hidroavião, entre o insigne navegador Pedro Álvares Cabral (
1467–1520) e a dupla de notáveis e destemidos aeronautas portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral,entre o quadrante náutico e o sextante aéreo, símbolos da ligação imorredoura entre Portugal e Brasil, denotam duas épocas, duas histórias, dois marcantes acontecimentos.
Partindo de Lisboa no hidroavião Lusitânia, o piloto Sacadura Cabral (
1881–1924) e o navegador Gago Coutinho (
1869–1959) percorreram 8.383km em 62h26min de voo, fazendo escalas em Las Palmas, Gando, São Vicente, São Tiago, Penedos de São Pedro e São Paulo, Fernando de Noronha, Recife, Salvador, Porto Seguro, Vitória e Rio de Janeiro. A aeronave utilizada nessa incrível façanha era um monomotor Fairey III-D de 350cv. A chegada ao Brasil e o regresso a Portugal foram motivos de grandes apoteoses. Naquele momento não eram habituais grandes viagens sobre o mar, e sem pontos de referência na água ou em terra. A navegação astronômica tornou-se,a partir dessa magnífica epopeia, condição básica para o progresso da aviação e, consequentemente, importante fator de desenvolvimento dos povos. Gago Coutinho e Sacadura Cabral formaram uma dupla muito especial e altamente criativa, desenvolvendo, em conjunto, um curioso equipamento que denominaram “
Corretor de Rumos”, que permitia plotar a deriva do avião e calcular o rumo verdadeiro, com excelente precisão. Tinha a dimensão equivalente aos dias de hoje com o emprego do GPS, sistema de posicionamento global por satélite. Utilizaram também o “
Sextante de Horizonte Artificial”. Este sextante resultou de uma adaptação do clássico sextante de marinha, realizada em 1919 por Gago Coutinho, mediante a aplicação de um nível de bolha de ar e de um espelho auxiliar para refletir a imagem da bolha.
Este dispositivo permitia assim definir um plano horizontal. Esta invenção, até então inédita, revolucionaria os métodos de navegação aérea, permitindo realizá-la com precisão, sem qualquer auxílio exterior. Era o nascimento do que proporcionaria o atual horizonte artificial, para o voo por instrumentos.
Resumo da viagem
A Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul foi efetuada sem o apoio de qualquer navio auxiliar, nem tampouco a bordo dos hidroaviões “
Fairey” existia qualquer aparelho de radiotelegrafia. Na navegação da Travessia, feita fora da linha normal de navegação marítima, apenas se observou o Sol e a bordo do avião praticou-se a navegação como se estivesse a bordo de um navio isolado, dependente apenas da utilização da bússola, dos cronômetros e do sextante português. Os cálculos da posição foram feitos por processos especiais e muito rápidos, criados pelos aeronautas portugueses e, assim, a posição não levava mais de três minutos para ser encontrada. Estes processos permitiram o traçado de 40 retas de altura durante as 11 horas e 20 minutos de voo que durou a etapa crítica Porto Praia – Penedo de São Pedro, numa extensão de 1.700 km. Durante a Travessia Aérea do Atlântico Sul, os notáveis aviadores estiveram sem avistar terra durante 36 horas e 44 minutos e, durante este tempo, foram observados 96 grupos de alturas do Sol, ou seja, um grupo para cada 23 minutos. Durante a Travessia foram percorridas 4.527 milhas náuticas em 62 horas e 26 minutos de voo, ou seja, a uma velocidade média, por hora, de 72,5 milhas náuticas por hora. O monumento evocativo do memorável feito histórico pode ser visto em Lisboa, próximo à Torre de Belém, e representa o “
Santa Cruz”, o hidroavião que concluiu a épica viagem iniciada em 30 de março de 1922 com o “
Lusitânia”. Este afundou em 18 de abril junto aos Penedos de São Pedro e São Paulo. A Travessia prosseguiu com o hidroplano “
Portugal”, que também se perdeu na mesma área, em 11 de maio, sendo substituído pelo “
Santa Cruz”, que, finalmente, chegou a Recife em 5 de junho e, posteriormente, ao Rio de janeiro, em 17 de junho. O Museu de Marinha, em Lisboa, acolhe em seu precioso acervo o hidroavião “
Fairey”, o único aeroplano sobrevivente da perigosa Travessia, e que foi batizado de “
Santa Cruz” pela esposa do então Presidente do Brasil, Dr. Epitácio Pessoa.
Embora a fragilidade dos hidroaviões utilizados obrigasse os insignes aeronautas a deixar pelo caminho o “Lusitânia” e o “Portugal”, esta temerária e atribulada Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, em que os nobres aviadores estiveram muito perto de perder a vida, teve o mérito de comprovar a eficácia e o valor dos processos desenvolvidos por Gago Coutinho para a navegação aérea, assim como o bom desempenho do “Sextante de Bolha”, por ele inventado, e do “Corretor de Abatimento”, concebido em parceria com Sacadura Cabral. Com garra, coragem, determinação, aguçada inteligência, profissionalismo, e comovente denodo, completaram, em 1922, a Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro. Proeza alcançada não somente devido à coragem e ao espírito aeronáutico, mas também aos instrumentos de navegação por eles criados e até então inexistentes.
Fonte: A Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul
Autor: Manuel Cambeses Júnior, Coronel-Aviador e membro do INCAER - Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica.
Pesquise: https://www2.fab.mil.br/incaer/images/eventgallery/instituto/Opusculos/Textos/opusculo_trav_atlantico_sul.pdf