Neste mês, o jornal Estado de Minas publicou, na coluna Pensar, texto de Paulo Nogueira brindando os 80 anos da obra O Pequeno Príncipe.
A matéria apresenta, também, entrevista com Mônica Cristina Corrêa, especialista na vida e na obra de Saint-Exupéry.
Boa leitura.
Bom domingo!
Clássico 'O pequeno príncipe' completa 80 anos muito além dos clichês
Paulo Nogueira / Estado de Minas
Esboço de 'O pequeno príncipe', desenhado por Saint-Exupéry e não incluído na obra, foi comprado em leilão, pelo colecionador suíço Bruno Stefanini |
Livro de Antoine de Saint-Exupéry tem mensagens sutis sobre a condição humana que devem ser compreendidas junto da vida épica do piloto-escritor
O que há de tão especial na história do aviador que cai no deserto e encontra uma criança muito curiosa que veio de outro mundo? O menino louro vestido como um pequeno príncipe sai do asteroide B612, se aventura por outros planetas e conhece personagens excêntricos ensimesmados em seus próprios universos. Ao chegar ao deserto do Saara inicia um diálogo com o piloto que prima pela sutileza e leva a reflexões sobre temas caros ao ser humano, como o sentido da vida, afeto, amizade, solidão e morte.
É o segundo livro mais lido do mundo depois da “Bíblia”, traduzido para quase 500 idiomas e dialetos ao longo de oito décadas – foi lançado em 6 de abril de 1943. Conhecido por mensagens simples e ao mesmo profundas – como “só se vê bem com o coração”, “o essencial é invisível aos olhos”, a raposa que quer se cativada e o poder da imaginação com o elefante oculto dentro da jiboia e o carneirinho dentro da caixa –, “O pequeno príncipe”, do escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), segue como fenômeno mundial.
O sucesso se explica para além dos clichês pinçados da obra. De correio aéreo a piloto de guerra durante três décadas, Saint-Exupéry teve uma vida épica, quase inacreditável. Para compreender com mais profundidade sua fábula atemporal, ilustrada pelo próprio autor, é fundamental conhecer sua trajetória de grandes riscos, com acidentes graves com os primeiros aviões, ainda na década de 1920 – engenhocas voadoras, com cabines abertas, voavam a apenas 150km/h e conseguiam altitude máxima de até cinco mil metros –, até o seu desaparecimento misterioso em pleno voo durante a Segunda Guerra Mundial. Ele também atravessou o céu do Brasil e por aqui deixou muitas lembranças como “Zeperri”, do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul.
Na passagem de aniversário do livro, a Companhia das Letrinhas fez a reimpressão da edição capa dura lançada em 2015, que inclui uma pequena biografia de Saint-Exupéry e muitas curiosidades sobre o autor, a criação do livro e os fatos que entrelaçam sua vida com sua principal e derradeira obra, entre as várias que escreveu. A tradução e os textos adicionais são da pesquisadora Mônica Cristina Corrêa, doutora em língua e literatura francesa e especialista na vida e na obra de Saint-Exupéry.
Ao longo do tempo, uma pergunta persiste? “O pequeno príncipe” é um livro para criança ou para o adulto que mantém dentro de si a criança que foi um dia? “'O pequeno príncipe' se mostra um livro para crianças, mesmo aquelas que estão ocultas, ou seja, as já “invisíveis” porque dentro de gente grande, que já cresceu. É o mesmo jogo do carneirinho que está contido na caixa, mas não se vê, e do próprio elefante que está dentro da jiboia e os adultos não percebem, mas está lá”, afirma Mônica Corrêa em entrevista ao Pensar.
Logo no primeiro capítulo do livro, ainda antes de apresentar seu encontro no deserto com o pequeno príncipe, o narrador desabafa sobre sua frustração após submeter aos adultos o seu desenho que é aparentemente um chapéu, mas ninguém consegue compreender o verdadeiro conteúdo.
“Ao longo da vida tive um monte de contatos com um monte de gente. Convivi muito com gente grande. Vi gente grande bem de perto, e que não melhorou muito a minha opinião. Quando encontrava uma pessoa adulta que me parecia mais lúcida, fazia com ela a experiência do meu desenho número 1, que sempre guardei. Queria saber se realmente era compreensiva. Mas ela sempre respondia: 'É um chapéu'. Então eu não lhe falava de jiboias, nem de florestas virgens, nem de estrelas. Falava de bridge, de golfe, de política e de gravatas. E a pessoa adulta ficava muito contente de conhecer um homem tão sensato”, conta o narrador da trama.
“E assim vivi só, sem ninguém com quem conversar verdadeiramente, até uma pane no deserto do Saara”, segue o piloto-narrador. Até ser surpreendido: “Por favor, me desenha um carneirinho?”. Mas nenhum desenho satisfaz o pequeno príncipe, até que, sem paciência, o piloto desenha uma caixa qualquer e afirma que o carneiro está dentro dela. E acaba, sem querer, atingindo o seu objetivo. “É assim mesmo que eu queria”, diz o pequeno príncipe. A sofisticação e a delicadeza de Saint-Exupéry para transmitir essa mensagem sobre a importância da imaginação, que as crianças têm de sobra e os adultos desdenham e quase não exercitam, são enternecedoras.
A mensagem parece ser clara: não deixe nunca morrer a criança que sobrevive em cada adulto. Afinal, como o afeto – que mais à frente na obra aparece na figura da raposa que pede para ser cativada – a imaginação, e a partir dela a criatividade, também é essencial à vida humana.
É graças a ela que é possível seguir em frente na vida com a presença das lembranças – no caso o desaparecimento-morte do pequeno príncipe. E na vida real, para seus milhões de leitores mundo afora, o desaparecimento do próprio piloto-escritor em pleno voo, já que seu corpo nunca foi encontrado.
Mensagens assim garantem a perenidade do clássico de Saint-Exupéry, muito além dos clichês pinçados do livro e transformados em autoajuda. “A obra se sobrepõe aos clichês e tem uma rara vida literária. Vida intemporal, pois não se sente nunca 'O pequeno príncipe' como um livro datado. Isso porque ele trata de valores imperecíveis centrados num ponto: o de dar sentido à vida. Sendo a morte inexorável, o essencial é encontrar uma razão para se viver”, analisa Mônica Cristina Corrêa.
VIDA DE RISCOS
Para compreender a plenitude de “O pequeno príncipe” é fundamental conhecer a incrível existência de Saint-Exupéry, que espalha detalhes autobiográficos por sua principal obra, sejam explícitos – como os voos no deserto e a raposa –, sejam implícitos – como a rosa de difícil trato e as conjecturas sobre sua representatividade na vida do autor. Antoine Jean-Baptiste Marie Roger de Saint-Exupéry nasceu numa família de origem aristocrática, mas empobrecida, em Lyon, na França, em 29 de junho de 1900. Era o terceiro de cinco filhos do cal Jean de Saint-Exupéry e Marie de Fonscolombe.
Perdeu o pai, vítima de derrame cerebral, aos 5 anos, o que obrigou sua mãe, aos 28 anos, a morar seguidamente em dois castelos de parentes. Nessa época, o menino foi despertado para a aviação, quando conheceu pilotos que faziam experiências com modelos de avião. Mas esse mundo de aventuras e fantasias no castelo ruiu em 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial.
Com apenas 14 anos, Antoine e seu irmão François – que morreria em 1917 de reumatismo infeccioso – foram levados para a um internato na Suíça, enquanto sua mãe, que pintava, tocava piano e escrevia poesias, permaneceu na França com as filhas trabalhando como enfermeira junto aos feridos da guerra. Da Suíça, o futuro piloto-escritor foi transferido para uma escola em Paris, onde fez amizade com artistas e escritores. Mas logo veio o alistamento no serviço militar, em 1921. Ainda sem saber que essa seria sua profissão – como conta Mônica Corrêa no posfácio da última edição de “O pequeno príncipe”–, Saint-Exupéry teve o caminho para sua carreira na aviação civil e militar ao ser incorporado ao Segundo Regimento de aviação de Estrasburgo.
Em 1923, Saint-Exupéry sofreu o primeiro acidente grave num aeroporto próximo a Paris, que deixou sequelas físicas. Nessa época, estava noivo de Louise, de família rica, que não o aprovava. Largou a profissão, mas o noivado também acabou, enquanto ele tentou outros empregos sem obter satisfação. Entre os muitos pilotos desempregados após o fim da Primeira Guerra, enfim, encontrou sua rota definitiva. Em 1926, um antigo professor o indicou à companhia Latécoère, que começou a fazer correio aéreo, apesar da precariedade dos aviões, para as colônias francesas no Norte da África, como Marrocos e Argélia, e queria estender o serviço até a América do Sul.
Os pilotos eram obrigados a entender de mecânica porque viajavam sozinhos e tinham que saber consertar as aeronaves, sempre com muitas panes. Outra grave ameaça eram as tribos árabes no deserto do Saara hostis aos colonizadores que atacavam e faziam pilotos reféns. Saint-Exupéry, devido à sua facilidade de comunicação e ao seu poder de conciliação, foi mandado pela Latécoère para Cabo Judy (hoje Tarfaya), uma das escalas da companhia no Marrocos. Foi viver numa cabana próxima a um forte espanhol para negociar, com êxito, resgate de pilotos com os rebeldes e também prestar socorro a outros pilotos em caso de pane.
O deserto inspirou a criação de “O pequeno príncipe”. “A solidão do lugar lhe permitiu um profundo mergulho em si mesmo. Possibilitou diferenciar o que realmente valia a pena na vida daquilo que era pura realidade material. Por isso, ao longo do texto [do livro] ele tenta passar a ideia de que existe algo além do visível. E que o invisível é essencial, mesmo que nossos olhos não possam enxerger”, conta Mônica Cristina Corrêa no posfácio da obra. Ela cita também, neste contexto, o elefante dentro da jiboia e o carneirinho na caixa. Teria vindo daí também a ideia da partida-desaparecimento do pequeno príncipe, mas sua presença se torna invisível e perene.
Foi no deserto também que surgiu a ideia de um dos principais personagens de “O pequeno príncipe”, a raposinha orelhuda. Ali, Saint-Exupéry teve contato com um feneco, uma raposa-do-deserto, de orelhas compridas. “Estou criando uma raposa feneco ou raposa solitária. É menor do que um gato e provida de orelhas imensas. É adorável! Infelizmente, é selvagem como uma fera e ruge como um leão”, escreveu ele em carta à irmã Gabrielle, em 1928.
“ZEPERRI” NO BRASIL
Depois da temporada no Saara, Saint-Exupéry foi nomeado para uma missão mais distante, a América do Sul. Em 1929, partiu para Buenos Aires como chefe da sucursal da companhia, após atravessar o Atlântico de navio, já como funcionário da Aeropostale, novo nome da Latécoère. O piloto trabalhou na implantação do correio aéreo entre Natal (RN) e o Chile. Os aviões eram muito limitados, não conseguiam atravessar o Atlântico. Eram, então, transportados de navio da África para a América do Sul. E como precisavam de muita manutenção e de abastecimento frequente, foram criadas escalas em cidades da extensa costa brasileira. Em situações adversas, os pilotos franceses contavam com a ajuda de pescadores e outros habitantes locais. Traziam gramofones e discos da França e promoviam bailes nos hangares, ganhando a simpatia dos brasileiros.
Mesmo com o pouco tempo que esteve no Brasil, entre o fim de 1929 e março de 1931, conta Mônica Cristina Corrêa, Saint-Exupéry, ficou famoso nas cidades por onde passou. Com seu nome difícil de pronunciar para os brasileiros, ficou conhecido como “Zeperri”. Com esse apelido, ele se tornou popular, por exemplo, em Florianópolis e Pelotas (RS). “Seu Deca”, pescador na capital catarinense, se dizia amigo do futuro escritor e contou que ele “estava sempre anotando alguma coisa e que gostava também de comer beijus feito com farinha de mandioca”, lembra Mônica Corrêa.
Em Porto Alegre, Saint-Exupéry e colegas chamavam a atenção passeando pela cidade com suas capas de piloto, profissão de grande novidade para a época. O piloto francês se tornou popular também no Rio de Janeiro e em Santos (SP). “Nem vou lhes falar dos pores do sol no Rio de Janeiro”, escreveu ele. A cidade era a capital do Brasil e ponto turístico aclamado recebia, inclusive, muitos franceses.
Foi em Buenos Aires, na Argentina, durante suas viagens de correio aéreo, que Saint-Exupéry conheceu sua futura mulher, a artista Consuelo de Suncín, viúva de El Salvador, com quem se casou na França e teve convivência difícil. Na década de 1930, ele foi trabalhar na recém-criada Air France, que incorporou a Aeropostale e outras companhias. Nessa época, sofreu o segundo acidente grave ao cair no mar no sul da França, na região de Côte d'Azur. A evolução dos aviões era acelerada e Saint-Exupéry testava vários modelos, inclusive hidroaviões.
A eclosão da Segunda Guerra, em 1939, foi outro baque na vida do piloto. Ele fez missões militares de reconhecimenmto aéreo até que decidiu se mudar para os EUA, em 1940. Viveu dois anos em Nova York, onde escreveu “O pequeno príncipe”, lançado em 6 de abril de 1943. Já era escritor conhecido com livros sobre aviação, como “Terra dos homens”, “Correio do sul” e “Piloto de guerra”. Amargurado com a guerra e vendo seu país ocupado pelos nazistas, contatou a força aérea francesa para lutar contra os alemães. Apesar da idade avançada para ser piloto, pois já estava com 44 anos, e da pouca moblidade como sequela dos acidentes, tinha contatos influentes e conseguiu atuar como piloto de reconhecimento sobre a França. Era difícil para ele pilotar um avião moderno em comparação com as engenhocas de décadas antes.
Então, chegou o trágico dia. Em 31 de julho de 1944, quando seu grupo estava situado na Córsega, ilha francesa no Mediterrâneo, Saint-Exupéry decolou para uma missão na Suíça, às 8h30. E nunca mais voltou. Em 1998, um pescador apanhou uma pedra calcificada em sua rede. Ao quebrá-la, encontrou um bracelete com um nome gravado: “Antoine de Saint-Exupéry”. As buscas no local culminaram nos destroços do P-38, que ele pilotava.
Com a publicidade do caso, um piloto alemão idoso, Horst Rippert, afirmou ter abatido o avião francês em 31 de julho de 1944. E, por ironia do destino, matou o escritor que admirava, porque não imaginava que ele estava naquele avião voando baixo durante a guerra.
Assim, quando o livro “O pequeno príncipe” foi lançado na França, em 1946, Saint-Exupéry já não estava mais neste mundo e não viu o sucesso estrondoso de sua obra por todo o planeta. Mas milhões de leitores mantêm viva suas lembranças com a eternidade do pequeno príncipe do deserto.
“O pequeno príncipe”
Antoine de Saint-Exupéry
Tradução de Mônica Cristina Corrêa
Companhia das Letrinhas
176 páginas
R$ 47,90 (impresso)
R$ 19,90 (digital)
Entrevista:
MÔNICA CRISTINA CORRÊA
Pesquisadora e tradutora
“Eu apostaria em mais 80 anos de sucesso”
A senhora concorda com a análise do biógrafo Joseph Hanimann, autor de “Saint-Exupéry – Der melancholische weltenbummler” (“Antoine de Saint-Exupéry – O melancólico viajante”), que disse em entrevista ao site DW que “O pequeno príncipe” não é um livro infantil, é para a criança que ainda existe dentro do leitor adulto?
Desde o começo, “O pequeno príncipe” se mostra um livro para crianças, mesmo aquelas que estão ocultas, ou seja, as já “invisíveis” porque dentro de gente grande, que já cresceu. É o mesmo jogo do carneirinho que está contido na caixa, mas não se vê, e do próprio elefante que está dentro da jiboia e os adultos não percebem, mas está lá.
Na dedicatória, ele a faz para Léon Werh, “quando ele era menino”. Se Hanimman se referia apenas às “crianças crescidas”, ele se referia, naturalmente, a “gente grande”. Seja como for, se é também para a criança que ainda existe dentro de cada um, é para crianças.
Sobre isso, há um documento praticamente desconhecido, que foi publicado recentissimamente, em que temos a palavra do autor. Trata-se de um pequeno texto que Saint-Exupéry dirigiu a seus editores, possivelmente, e traduzo aqui: “E eu mesmo ilustrei este livro para crianças, ainda que eu não saiba desenhar (e não tenho sobre isso a menor ilusão), é que encontrei, na época em que estava escrevendo, um garoto de sete anos que havia alinhado pedrinhas numa calçada. Como ele as deslocava com gravidade, eu lhe disse: “– Para que te servem essas pedrinhas? – Você não está vendo? – respondeu ele. São navios de guerra! Esse aqui está queimando. Esse outro já afundou! – Ah! Bom. Então, tive confiança nos meus desenhos”.
[O documento é de Nova York, folha datilografada entre 1942 e 1943. Está publicado no catálogo da recente exposição “A la reencontre du Petit Prince”, em Paris, na qual foram vistos os seus manuscritos. Edição da Gallimard, 2022. Página 88. Minha tradução.]
A ideia subjacente no caso é a de que somente uma “criança crescida” poderia usufruir de “O pequeno príncipe” e com isso não concordo.
Conforme a idade, a criança poderá percorrer as imagens, ler com os pais ou ler sozinha. O fato é que Saint-Exupéry, mesmo falando com as crianças, aborda temas muito complexos, entre os quais o da morte, portanto, das separações. E é nisso, me parece, que “gente grande” se baseia para dizer que não é para crianças. O autor, entretanto, argumentou com sua professora de inglês, numa conversa, que nada havia de problemático em falar de morte com as crianças, pois elas encarariam isso de forma natural.
Por que “O pequeno príncipe” virou esse fenômeno ao longo de oito décadas e se tornou o segundo livro mais lido da história? Uma das razões seria porque a relevância da obra de Saint-Exupéry vai muito além das suas mensagens pinçadas como clichês e muitas vezes descontextualizadas?
A obra se sobrepõe aos clichês e tem uma rara vida literária. Vida intemporal, pois não se sente nunca “O pequeno príncipe” como um livro datado. Isso porque ele trata de valores imperecíveis centrados num ponto: o de dar sentido à vida.
Sendo a morte inexorável, o essencial (para continuar com o autor) é encontrar uma razão para se viver. Não será a autoridade (do rei), o vício (do bêbado), o automatismo (do acendedor de lampiões); não será a ganância do homem de negócios, nem a vaidade tola, tampouco o sedentarismo do geógrafo. Tudo isso, como demonstrado, é viver num “planeta” solitário.
A essência que o pequeno príncipe busca e encontra no auge de sua jornada é o entendimento de que apenas as relações humanas valem a pena. Isso Saint-Exupéry verbalizou, aliás, em seu livro anterior, “Piloto de guerra”, de 1942: “Só há um luxo verdadeiro: as relações humanas”. É nisso que “O pequeno príncipe” se centra, e daí que vem esse substrato imortal. E, por incrível que pareça, ele é extraído justamente da consciência sobre a morte.
A condição humana, no meu entender, é o grande trunfo de “O pequeno príncipe”. Até agora, nada mudou: nascemos e morremos. O que está no meio precisa ser essencial e o grande problema é encontrá-lo para que esse intervalo valha a pena e faça sentido, Por isso, eu apostaria em mais 80 anos de sucesso para “O pequeno príncipe”.
Como a senhora cita no posfácio da última edição da Companhia das Letrinhas, há muitos elementos autobiográficos em “O pequeno príncipe”– que também vão além dos clichês – desde os mais claros, como a raposinha feneco (raposa-do-deserto), até outros subliminares, como a rosa, que seria uma espécie de representação da esposa de Saint-Exupéry. E ainda referências bíblicas, como o carneirinho, a serpente e a Terra como sétimo planeta visitado pelo pequeno príncipe, que seria analogia aos sete dias da criação do mundo. Essas características aumentam o fascínio e o mistério da obra?
Na cultura ocidental, em que o livro foi escrito, esses elementos têm a capacidade de gerar uma profunda identificação para o leitor. Eles promovem uma “pertença”. Sendo religioso ou não, o leitor tem essas noções do inconsciente coletivo, né? A serpente como símbolo da morte, o deserto como lugar de origem, a água como fonte da vida, a rosa como símbolo do amor (erótico, inclusive).
Muitos desses aspectos transcendem a própria civilização judaico-cristã, mas é preciso lembrar que esta se originou num mundo não ocidental. Por isso, o livro parece “abranger” uma identidade muito larga. Mais do que fascínio, eu diria que esses elementos geram o sentimento de pertença.
A heroica e incrível vida de Saint-Exupéry, os graves acidentes aéreos e o desaparecimento misterioso em plena Segunda Guerra Mundial, só desvendado meio século depois, também aumentam o interesse sobre “O pequeno príncipe”?
Sem dúvida, para os que vão além do livro, sim. A memória de um homem raro como Saint-Exupéry “dialoga” com sua obra-prima. Basta lembrarmos que ele deixou rasurado que o pequeno príncipe chegou a ver 43 pores do sol e mudou para 44. Este é o número de anos que ele próprio viveu (1900-1944).
E que também ele desapareceu misteriosamente, sem deixar vestígios de um corpo, como o pequeno príncipe. O sucesso da obra se calca numa frase profética também: “Eu parecerei estar morto e não será verdade”. Estamos constatando isso, não? Autor e personagem estão aqui conosco, bem vivos e com a promessa de permanecer.
Fonte: Estado de Minas
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