Nos domingos de abril de 2017, nossas publicações brindam aos 90 anos da travessia do Oceano Atlântico pelo hidroavião Jahú, completada em 28 de abril de 1927.
Foi um feito extraordinário realizado por equipe genuinamente brasileira.
Confira mais uma interessante seleção sobre o tema.
Boa leitura.
Jahú, relembrando a sofrida história…
Fato pioneiro em nossa história da aviação, pouco registrado nos livros, Comandante João Ribeiro de Barros é lembrado por exemplo por quem circula na rodovia que liga Jaú a Bauru, no interior do Estado de São Paulo ou em outros lugares que possuem o seu nome.
Ele foi o aviador, um dos pioneiros da aviação no Brasil, com uma trajetória curta pela política que a própria família pouco conhece. Rico e jovem, aos 27 anos nascido em Jaú (SP) tornou-se celebridade na década de 1920 como o primeiro piloto das Américas a comandar uma travessia aérea do Oceano Atlântico sem escalas e sem ajuda de navios.
Com ele, não tinha tempo feio, literalmente. Para realizar o sonho de sobrevoar o oceano Atlântico, João Ribeiro de Barros aturou gozações da imprensa internacional, enfrentou sabotagens, tempestades, contornou um motim da tripulação e mandou até um Presidente da República calar a boca. Sua obstinação era a marca registrada desse grande aviador de Jaú, que nasceu a 4 de abril de 1900 e ainda menino, ouviu maravilhado os feitos de Santos Dumont na Europa.
Decidido a ser piloto, abandonou o curso de Direito em 1919 e mudou-se para os Estados Unidos, onde foi estudar mecânica aeronáutica. Voltou para casa em 1921 e, dois anos depois e em abril de 1923, finalmente tirou seu brevê, dando início então a uma série de reides aéreos pelo país até que, em 1926 idealizou aquela que seria sua maior aventura. A travessia do Atlântico fora realizada quatro anos antes pelos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Eles saíram de Lisboa em 30 de março de 1922 a bordo do Lusitânia, um hidroavião bimotor Fairey FIII-D e chegaram ao Rio em 17 de junho. Porém um detalhe é que a dupla portuguesa utilizou três aviões nesse percurso, o que reduziu o brilho de seu feito. Ninguém havia ainda saído da Europa e chegado à América com uma única aeronave e João Ribeiro de Barros queria ter esse pioneirismo.
Sem apoio financeiro do governo brasileiro ou de empresas, o comandante vendeu sua parte da herança paterna para comprar a aeronave com que faria a viagem: era um hidroavião italiano Savoia-Marchetti modelo S-55, de madeira, com mais de quatro toneladas, em precário estado de conservação. Era impulsionado por dois motores Isotta-Fraschini que como mencionado era máquina bem usada, pois o fabricante não tinha modelos novos para oferecer. De quebra, dois problemas sérios: bebia muita gasolina e não conseguia decolar com os tanques cheios. Seu dono anterior, o Conde Casagrande, fora obrigado inclusive, a abortar uma travessia da Itália até a Argentina por conta dessas deficiências. Pior para o piloto brasileiro, que começou a ser ironizado pela imprensa estrangeira, primeiro pelo estado da aeronave, segundo que a galeria de heróis era para europeus e o Brasil era pouco famoso na produção de celebridades desta natureza. Num teste pilotado por Barros, o hidroavião quase afundou ao pousar no lago de Sesto Calende, na Itália, já que a parte inferior estava podre. “Mordido” de raiva, João decidiu se virar com o que tinha. Desmontou o Alcyone (o apelido do hidroavião), conseguiu reduzir o atrito dos flutuadores com a água e reduziu o número de tambores de combustível na parte dianteira, reforçando a traseira. Com isso, melhorou a distribuição de peso da aeronave. Feita a modificação, remontou o hidroplano, rebatizado de Jahú, em homenagem à sua cidade natal, encheu os tanques e decolou de Sesto Calende em 16 de outubro de 1926 rumo ao porto de Gênova. A façanha tecnológica deixou surpresos até os engenheiros da Casa Savoia. Iniciada oficialmente a travessia a partir de Gênova, tinha além do piloto, o copiloto Arthur Cunha, o navegador Newton Braga e o mecânico Vasco Cinquini. Um dia antes da partida, o jornal O Estado de S. Paulo registrava a euforia dos brasileiros, referindo-se ao comandante como “arrojado” e também publicou os “ardentes votos” da Câmara Italiana de Comércio ao “valoroso aviador” e desejou que o “heroico empreendimento” obtivesse êxito. Mal sabiam que, poucas horas após deixar Gênova, início da jornada (veja o mapa), o piloto e sua equipe enfrentariam o primeiro de vários testes de nervos. Na véspera da partida, daquele 12 de outubro, um sabotador colocou areia dentro da câmara de combustão e um pedaço de bronze no cárter dos motores, além de sabão no tanque de combustível. Na manhã seguinte, obviamente ignorando a manobra suja, João e sua equipe, entraram no hidroavião e decolaram do porto de Gênova sob aplausos da grande multidão.
Na altura do Golfo de Valência, na Espanha, depois de cinco horas de voo sobre o Mediterrâneo, surgiram os primeiros problemas causados pela sabotagem pois os motores começaram a falhar devido a um problema na alimentação automática de gasolina, o que obrigou a tripulação ao extenuante uso das bombas manuais. Mas os danos no motor provocados pela sabotagem e em um dos botes forçaram o grupo a pousar em Alicante, no Mediterrâneo espanhol. As autoridades espanholas não gostaram da inesperada visita e, alegando desconhecer os propósitos do pouso e sem um aviso prévio promoveram a prisão de todos os tripulantes, que só ganharam a liberdade depois com a ajuda da Embaixada do Brasil em Madri. Ainda na cadeia, João foi colocado numa cela junto com dois detentos espanhóis que sabiam do voo. Um virou para o outro e brincou: “Está vendo? É na cadeia que se conhecem os grandes homens”. Os problemas, contudo, continuaram, pois duas horas depois de ter ganhado novamente os ares, o Jahú voltou a piorar e fez um pouso de emergência na possessão inglesa de Gibraltar, onde foi constatada a sabotagem. João avisou o cônsul brasileiro e providenciou a limpeza dos reservatórios de combustível e o reabastecimento dos mesmos. Neste momento o mesmo consulado brasileiro emitiu um laudo técnico e oficial confirmando as suspeitas da tripulação de que o Jahú teria de fato sofrido uma sabotagem. Após a nova decolagem, os motores continuaram a ratear e o avião teve que pousar na ilha Las Palmas, no arquipélago das Canárias, onde desta vez foi descoberto o pedaço de metal que o sabotador colocara no cárter. Apesar de mais esse contratempo, o avião estabeleceu um novo recorde, percorrendo 1.300 quilômetros em 7 horas e 15 minutos, 40 minutos a menos do que o tempo estabelecido por Sacadura Cabral e Gago Coutinho na mesma distância. O reparo foi feito em Las Palmas de Gran Canária, Espanha e permitiu ao hidroavião seguir para Porto Praia, na República de Cabo Verde, onde teria início, de fato, a travessia do Atlântico sem escalas. Mas não foi fácil chegar lá, e não apenas pelas condições da aeronave, mas também pela rebeldia do copiloto, o tenente Artur Cunha. Ele trombou de frente com João e acabou abandonando a tripulação no meio da travessia. Como se isso não bastasse, Newton Braga teve de voltar à Itália para conseguir peças de reposição do avião. Para completar, João que também tinha contraído malária na Ilha africana, recebeu um telegrama do Presidente da República, Artur Bernardes, pedindo que abandonasse sua aventura. Irritado, o piloto recomendou ao chefe do Executivo que “cuidasse das obrigações de seu cargo e não se metesse em assuntos de que nada entendia e onde não fora chamado”. João teve que comandar uma reforma completa no motor do hidroavião. A equipe foi obrigada a reparar até o bote salva-vidas porque, quando o avião pousou, avariou o casco, conta o sobrinho Rubens Ribeiro de Barros, que conviveu por 13 anos com o tio aviador e dele ouviu muitas histórias. “Comprar equipamento na Europa era algo demorado e essas peças eram da Itália. O processo de compra e conserto demorou meses”, explica Rubens. Diante de tantas dificuldades, João desanimou. Chegou a anunciar que desmontaria o Jahú e daria por encerrada sua missão. Contudo um telegrama da mãe mexeu com seus brios: “Não desmonte aparelho. Providenciaremos continuação reide custe o que custar. Paralisação seria fracasso e as asas do avião representam bandeira brasileira. Dize se queres piloto auxiliar”. O piloto respondeu que sim e a família convidou o primeiro-tenente João Negrão, da então Força Pública de São Paulo. Ele aceitou a missão e, em 21 de março de 1927, embarcou rumo a Porto Praia, no arquipélago de Cabo Verde. Com o apelo da mãe em resposta, o filho escreveu: “A viagem de qualquer maneira será feita”.
Com a tripulação completa, o Jahú reiniciou sua travessia na madrugada de 28 de abril de 1927. Voando a 250 metros acima do Atlântico, com uma velocidade média de 190 quilômetros horários — recorde absoluto durante os 10 anos seguintes, o hidroavião aproximou-se do arquipélago de Fernando de Noronha, após 12 horas de voo. Uma das hélices se partiu, mas o Jahú, mesmo avariado, pousou em águas brasileiras às 16 horas daquele dia. De maio a agosto, o Jahú ainda fez escalas em Natal, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos, antes do pouso final em Santo Amaro (Represa Guarapiranga, na cidade de São Paulo), em 1° de agosto. A recepção aos heróis foi descrita por José Ribeiro de Barros, irmão do aviador, no livro História heróica da aviação. Segundo ele, a população estava “convulsionada de espírito cívico” pelo “instante que passaria à história do século”. No livro João Ribeiro de Barros, o historiador José Raphael Toscano narra detalhes: “o povo brasileiro soube premiar seu herói, oferecendo-lhe mais de cem medalhas de ouro e platina, adornadas de pedras preciosas, dezenas de cartões de ouro e troféus, tudo em comemoração ao patriótico empreendimento que se tornou justo motivo de expansão do orgulho nacional”. Na capa do Estado de S. Paulo de 7 de agosto de 1927, o registro de um dia de celebridades vivido pelos tripulantes na véspera: foram recebidos na Força Pública e homenageados com apresentações de esquadrilha aérea e das equipes de equitação e ginástica, “sempre ovacionados pela grande multidão que estacionava na avenida Tiradentes”. Mais tarde, compareceram a uma sessão solene na Câmara Italiana de Comércio, onde o cônsul da Itália e o presidente da entidade os esperavam.
Ao sobrinho Rubens, Barros contava os detalhes e dificuldades da viagem intercontinental. Um deles é que a travessia havia sido feita apenas com ajuda de bússola, para determinar direções horizontais; altímetro, para medir a altitude; e bomba de fumaça, para calcular a velocidade: “eles a lançavam e marcavam em quanto tempo atingia a água”, explicava o sobrinho”.
UM POUSO BREVE
No dia 3 de janeiro de 1927, quando a travessia oceânica era apenas um plano, o aviador já era tema de lei aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), que o imortalizou como nome de uma via (ainda hoje denominada Ribeiro de Barros, na zona oeste da capital). “Esse moço que, no ‘raid’ admirável que vem fazendo, tem patenteado, aos olhos do mundo, o quanto podem a bravura, o civismo, a abnegação e, sobretudo, a persistência de nossa gente”, disse em Plenário o vereador Diógenes de Lima, proponente do projeto de lei sobre a denominação da via. Segundo o parlamentar, a proposta era legitimada por um abaixo-assinado de proprietários e moradores da rua que receberia o nome do piloto. Nove anos mais tarde, o comandante foi o único eleito pela Ação Integralista Brasileira (AIB) para a Câmara Municipal de SP, com 1.426 votos. “Os chefes integralistas recomendaram aos seus eleitores que descarreguem seus sufrágios no candidato João Ribeiro de Barros”, escreveu a Folha da Manhã (hoje Folha de São Paulo) de 5 de julho de 1936. Como candidato, o slogan de campanha do piloto foi “Contra o aumento dos impostos”, usado também pelos demais concorrentes integralistas naquele ano. Assumiu no dia 9 de julho, vestido com o uniforme verde do partido, e, antes de fazer o juramento devido, de respeito às leis e às Constituições Federal e Estadual, bradou “em nome de Deus, anauê!”. A saudação, de origem tupi, foi adotada primeiro pelos escoteiros e depois pelos integralistas. Porém sem documentar os motivos, Barros renunciou em 25 de julho de 1936. Se continuasse na Câmara, seu mandato terminaria em 19 de novembro do ano seguinte, com o fechamento do Legislativo pelo Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas. A Ação Integralista Brasileira era composta, principalmente, por estreantes na política, como o aviador, e por membros da classe média, “intencionada a romper com os grupos chefiados por coronéis, latifundiários, cafeicultores ou que agiam a mando dessas pessoas”, como explica o historiador Renato Alencar Dotta, que pesquisa o integralismo brasileiro como doutorando na Universidade de São Paulo (USP).
Mas o Jahú utilizado no maior feito da aviação brasileira depois de Santos Dumont quase apodreceu por completo no antigo Museu de Aeronáutica da Fundação Santos Dumont no parque do Ibirapuera (onde hoje está a Oca). O bimotor Jahú, que fez a glória do aviador João Ribeiro de Barros, falecido em 19 de junho de 1947, foi abandonado, junto com inúmeras outras aeronaves históricas, que ficou fechado durante cerca de 10 anos. Foi um descaso tão grande que a família Ribeiro de Barros lutou muito na Justiça para anular a doação do avião e de outros objetos do piloto àquela instituição. Admirado por astronautas americanos e cosmonautas soviéticos, o Jahú esteve exposto, de 1927 a 1962, no Museu do Ipiranga. De lá, foi para o Ibirapuera, onde teve início seu martírio que durou 40 anos. Os conselheiros da Fundação Santos Dumont, em sua maioria ex-pilotos e pessoas ligadas à aviação, foram morrendo e cedendo lugar a burocratas. Foram eles inclusive os responsáveis por uma reforma desastrosa do avião, que teve seu revestimento original, em lona, substituído parcialmente por uma camada de espuma coberta por náilon. Na ocasião a família Ribeiro de Barros fez a reclamação do absurdo e conseguiu sustar o péssimo reparo na Justiça e teve em represália, a proibição de entrar no museu pelo então presidente da Fundação Santos Dumont, Jorge Yunes. O sobrinho do aviador pioneiro ainda relataria que mendigos usaram documentos lá guardados como papel higiênico, além de vários objetos do acervo terem sido roubados, incluindo duas bombas e um paraquedas do caça Gloster Meteor. O último item, por sinal, foi usado em um salto no Campo de Marte e não abriu, causando a morte do paraquedista. A saga da família Ribeiro imaginava alguns destinos para a aeronave como por exemplo entregá-la à Prefeitura de Jaú, que construiria um memorial em homenagem ao ilustre filho da terra, exibi-la permanentemente no Aeroporto Internacional de Cumbica, pois até então existia planos de batizá-lo com o nome do aviador, etc.. Com a desativação do Museu de Aeronáutica no Ibirapuera em 2000, o Jahú foi transferido para o hangar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no Aeroporto Campo de Marte, onde se constatou que seu estado de deterioração era tão grave que clamava por uma restauração completa. Esta foi levada avante graças a um convênio assinado entre a Fundação Santos Dumont, a Helipark, o Comando da Aeronáutica e a Aeronáutica Militar Italiana. Os trabalhos de restauração tiveram início em Abril de 2004 e envolveram uma equipe de doze profissionais. Os dois motores foram recuperados no Parque de Material Aeronáutico de São Paulo (PAMA-SP). O trabalho com a estrutura concentrou-se nas oficinas da Helipark, visando reconstituir a configuração exata da aeronave até os detalhes, desde o tipo de madeira e de pregos (de cobre e de latão), até ao tom de vermelho da pintura original. Terminado todo o processo de restauração a aeronave foi entregue, no dia 26 de Outubro de 2007, no Helicentro Helipark, em Carapicuíba. O avião foi então requerido pela cidade de Jaú, para exposição em museu aberto, mesmo após ganhar o direito frente ao museu proprietário. Mas a Fundação Santos Dumont cedeu o Jahú por comodato ao Museu TAM na cidade de São Carlos (SP), onde atualmente encontra-se exposto, ficando para a cidade natal do piloto apenas uma réplica. Em fevereiro de 2016, o Museu TAM Asas de um Sonho, que abriga o Jahú e outras aeronaves históricas, suspendeu as atividades e a aeronave ficará inacessível ao público por tempo indeterminado, até que sejam concluídas as negociações entre os envolvidos para a instalação de um novo museu no Campo de Marte na Capital. Segundo o professor da USP Fernando Catalano, doutor em engenharia aeronáutica, os motores do avião são os dois últimos remanescentes no mundo.
Fato pioneiro em nossa história da aviação, pouco registrado nos livros, Comandante João Ribeiro de Barros é lembrado por exemplo por quem circula na rodovia que liga Jaú a Bauru, no interior do Estado de São Paulo ou em outros lugares que possuem o seu nome.
João Ribeiro de Barros |
Sem apoio financeiro do governo brasileiro ou de empresas, o comandante vendeu sua parte da herança paterna para comprar a aeronave com que faria a viagem: era um hidroavião italiano Savoia-Marchetti modelo S-55, de madeira, com mais de quatro toneladas, em precário estado de conservação. Era impulsionado por dois motores Isotta-Fraschini que como mencionado era máquina bem usada, pois o fabricante não tinha modelos novos para oferecer. De quebra, dois problemas sérios: bebia muita gasolina e não conseguia decolar com os tanques cheios. Seu dono anterior, o Conde Casagrande, fora obrigado inclusive, a abortar uma travessia da Itália até a Argentina por conta dessas deficiências. Pior para o piloto brasileiro, que começou a ser ironizado pela imprensa estrangeira, primeiro pelo estado da aeronave, segundo que a galeria de heróis era para europeus e o Brasil era pouco famoso na produção de celebridades desta natureza. Num teste pilotado por Barros, o hidroavião quase afundou ao pousar no lago de Sesto Calende, na Itália, já que a parte inferior estava podre. “Mordido” de raiva, João decidiu se virar com o que tinha. Desmontou o Alcyone (o apelido do hidroavião), conseguiu reduzir o atrito dos flutuadores com a água e reduziu o número de tambores de combustível na parte dianteira, reforçando a traseira. Com isso, melhorou a distribuição de peso da aeronave. Feita a modificação, remontou o hidroplano, rebatizado de Jahú, em homenagem à sua cidade natal, encheu os tanques e decolou de Sesto Calende em 16 de outubro de 1926 rumo ao porto de Gênova. A façanha tecnológica deixou surpresos até os engenheiros da Casa Savoia. Iniciada oficialmente a travessia a partir de Gênova, tinha além do piloto, o copiloto Arthur Cunha, o navegador Newton Braga e o mecânico Vasco Cinquini. Um dia antes da partida, o jornal O Estado de S. Paulo registrava a euforia dos brasileiros, referindo-se ao comandante como “arrojado” e também publicou os “ardentes votos” da Câmara Italiana de Comércio ao “valoroso aviador” e desejou que o “heroico empreendimento” obtivesse êxito. Mal sabiam que, poucas horas após deixar Gênova, início da jornada (veja o mapa), o piloto e sua equipe enfrentariam o primeiro de vários testes de nervos. Na véspera da partida, daquele 12 de outubro, um sabotador colocou areia dentro da câmara de combustão e um pedaço de bronze no cárter dos motores, além de sabão no tanque de combustível. Na manhã seguinte, obviamente ignorando a manobra suja, João e sua equipe, entraram no hidroavião e decolaram do porto de Gênova sob aplausos da grande multidão.
Na altura do Golfo de Valência, na Espanha, depois de cinco horas de voo sobre o Mediterrâneo, surgiram os primeiros problemas causados pela sabotagem pois os motores começaram a falhar devido a um problema na alimentação automática de gasolina, o que obrigou a tripulação ao extenuante uso das bombas manuais. Mas os danos no motor provocados pela sabotagem e em um dos botes forçaram o grupo a pousar em Alicante, no Mediterrâneo espanhol. As autoridades espanholas não gostaram da inesperada visita e, alegando desconhecer os propósitos do pouso e sem um aviso prévio promoveram a prisão de todos os tripulantes, que só ganharam a liberdade depois com a ajuda da Embaixada do Brasil em Madri. Ainda na cadeia, João foi colocado numa cela junto com dois detentos espanhóis que sabiam do voo. Um virou para o outro e brincou: “Está vendo? É na cadeia que se conhecem os grandes homens”. Os problemas, contudo, continuaram, pois duas horas depois de ter ganhado novamente os ares, o Jahú voltou a piorar e fez um pouso de emergência na possessão inglesa de Gibraltar, onde foi constatada a sabotagem. João avisou o cônsul brasileiro e providenciou a limpeza dos reservatórios de combustível e o reabastecimento dos mesmos. Neste momento o mesmo consulado brasileiro emitiu um laudo técnico e oficial confirmando as suspeitas da tripulação de que o Jahú teria de fato sofrido uma sabotagem. Após a nova decolagem, os motores continuaram a ratear e o avião teve que pousar na ilha Las Palmas, no arquipélago das Canárias, onde desta vez foi descoberto o pedaço de metal que o sabotador colocara no cárter. Apesar de mais esse contratempo, o avião estabeleceu um novo recorde, percorrendo 1.300 quilômetros em 7 horas e 15 minutos, 40 minutos a menos do que o tempo estabelecido por Sacadura Cabral e Gago Coutinho na mesma distância. O reparo foi feito em Las Palmas de Gran Canária, Espanha e permitiu ao hidroavião seguir para Porto Praia, na República de Cabo Verde, onde teria início, de fato, a travessia do Atlântico sem escalas. Mas não foi fácil chegar lá, e não apenas pelas condições da aeronave, mas também pela rebeldia do copiloto, o tenente Artur Cunha. Ele trombou de frente com João e acabou abandonando a tripulação no meio da travessia. Como se isso não bastasse, Newton Braga teve de voltar à Itália para conseguir peças de reposição do avião. Para completar, João que também tinha contraído malária na Ilha africana, recebeu um telegrama do Presidente da República, Artur Bernardes, pedindo que abandonasse sua aventura. Irritado, o piloto recomendou ao chefe do Executivo que “cuidasse das obrigações de seu cargo e não se metesse em assuntos de que nada entendia e onde não fora chamado”. João teve que comandar uma reforma completa no motor do hidroavião. A equipe foi obrigada a reparar até o bote salva-vidas porque, quando o avião pousou, avariou o casco, conta o sobrinho Rubens Ribeiro de Barros, que conviveu por 13 anos com o tio aviador e dele ouviu muitas histórias. “Comprar equipamento na Europa era algo demorado e essas peças eram da Itália. O processo de compra e conserto demorou meses”, explica Rubens. Diante de tantas dificuldades, João desanimou. Chegou a anunciar que desmontaria o Jahú e daria por encerrada sua missão. Contudo um telegrama da mãe mexeu com seus brios: “Não desmonte aparelho. Providenciaremos continuação reide custe o que custar. Paralisação seria fracasso e as asas do avião representam bandeira brasileira. Dize se queres piloto auxiliar”. O piloto respondeu que sim e a família convidou o primeiro-tenente João Negrão, da então Força Pública de São Paulo. Ele aceitou a missão e, em 21 de março de 1927, embarcou rumo a Porto Praia, no arquipélago de Cabo Verde. Com o apelo da mãe em resposta, o filho escreveu: “A viagem de qualquer maneira será feita”.
Com a tripulação completa, o Jahú reiniciou sua travessia na madrugada de 28 de abril de 1927. Voando a 250 metros acima do Atlântico, com uma velocidade média de 190 quilômetros horários — recorde absoluto durante os 10 anos seguintes, o hidroavião aproximou-se do arquipélago de Fernando de Noronha, após 12 horas de voo. Uma das hélices se partiu, mas o Jahú, mesmo avariado, pousou em águas brasileiras às 16 horas daquele dia. De maio a agosto, o Jahú ainda fez escalas em Natal, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos, antes do pouso final em Santo Amaro (Represa Guarapiranga, na cidade de São Paulo), em 1° de agosto. A recepção aos heróis foi descrita por José Ribeiro de Barros, irmão do aviador, no livro História heróica da aviação. Segundo ele, a população estava “convulsionada de espírito cívico” pelo “instante que passaria à história do século”. No livro João Ribeiro de Barros, o historiador José Raphael Toscano narra detalhes: “o povo brasileiro soube premiar seu herói, oferecendo-lhe mais de cem medalhas de ouro e platina, adornadas de pedras preciosas, dezenas de cartões de ouro e troféus, tudo em comemoração ao patriótico empreendimento que se tornou justo motivo de expansão do orgulho nacional”. Na capa do Estado de S. Paulo de 7 de agosto de 1927, o registro de um dia de celebridades vivido pelos tripulantes na véspera: foram recebidos na Força Pública e homenageados com apresentações de esquadrilha aérea e das equipes de equitação e ginástica, “sempre ovacionados pela grande multidão que estacionava na avenida Tiradentes”. Mais tarde, compareceram a uma sessão solene na Câmara Italiana de Comércio, onde o cônsul da Itália e o presidente da entidade os esperavam.
O hidroavião cumprindo sua jornada na represa de Guarapiranga em Santo Amaro, SP |
UM POUSO BREVE
No dia 3 de janeiro de 1927, quando a travessia oceânica era apenas um plano, o aviador já era tema de lei aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), que o imortalizou como nome de uma via (ainda hoje denominada Ribeiro de Barros, na zona oeste da capital). “Esse moço que, no ‘raid’ admirável que vem fazendo, tem patenteado, aos olhos do mundo, o quanto podem a bravura, o civismo, a abnegação e, sobretudo, a persistência de nossa gente”, disse em Plenário o vereador Diógenes de Lima, proponente do projeto de lei sobre a denominação da via. Segundo o parlamentar, a proposta era legitimada por um abaixo-assinado de proprietários e moradores da rua que receberia o nome do piloto. Nove anos mais tarde, o comandante foi o único eleito pela Ação Integralista Brasileira (AIB) para a Câmara Municipal de SP, com 1.426 votos. “Os chefes integralistas recomendaram aos seus eleitores que descarreguem seus sufrágios no candidato João Ribeiro de Barros”, escreveu a Folha da Manhã (hoje Folha de São Paulo) de 5 de julho de 1936. Como candidato, o slogan de campanha do piloto foi “Contra o aumento dos impostos”, usado também pelos demais concorrentes integralistas naquele ano. Assumiu no dia 9 de julho, vestido com o uniforme verde do partido, e, antes de fazer o juramento devido, de respeito às leis e às Constituições Federal e Estadual, bradou “em nome de Deus, anauê!”. A saudação, de origem tupi, foi adotada primeiro pelos escoteiros e depois pelos integralistas. Porém sem documentar os motivos, Barros renunciou em 25 de julho de 1936. Se continuasse na Câmara, seu mandato terminaria em 19 de novembro do ano seguinte, com o fechamento do Legislativo pelo Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas. A Ação Integralista Brasileira era composta, principalmente, por estreantes na política, como o aviador, e por membros da classe média, “intencionada a romper com os grupos chefiados por coronéis, latifundiários, cafeicultores ou que agiam a mando dessas pessoas”, como explica o historiador Renato Alencar Dotta, que pesquisa o integralismo brasileiro como doutorando na Universidade de São Paulo (USP).
Mas o Jahú utilizado no maior feito da aviação brasileira depois de Santos Dumont quase apodreceu por completo no antigo Museu de Aeronáutica da Fundação Santos Dumont no parque do Ibirapuera (onde hoje está a Oca). O bimotor Jahú, que fez a glória do aviador João Ribeiro de Barros, falecido em 19 de junho de 1947, foi abandonado, junto com inúmeras outras aeronaves históricas, que ficou fechado durante cerca de 10 anos. Foi um descaso tão grande que a família Ribeiro de Barros lutou muito na Justiça para anular a doação do avião e de outros objetos do piloto àquela instituição. Admirado por astronautas americanos e cosmonautas soviéticos, o Jahú esteve exposto, de 1927 a 1962, no Museu do Ipiranga. De lá, foi para o Ibirapuera, onde teve início seu martírio que durou 40 anos. Os conselheiros da Fundação Santos Dumont, em sua maioria ex-pilotos e pessoas ligadas à aviação, foram morrendo e cedendo lugar a burocratas. Foram eles inclusive os responsáveis por uma reforma desastrosa do avião, que teve seu revestimento original, em lona, substituído parcialmente por uma camada de espuma coberta por náilon. Na ocasião a família Ribeiro de Barros fez a reclamação do absurdo e conseguiu sustar o péssimo reparo na Justiça e teve em represália, a proibição de entrar no museu pelo então presidente da Fundação Santos Dumont, Jorge Yunes. O sobrinho do aviador pioneiro ainda relataria que mendigos usaram documentos lá guardados como papel higiênico, além de vários objetos do acervo terem sido roubados, incluindo duas bombas e um paraquedas do caça Gloster Meteor. O último item, por sinal, foi usado em um salto no Campo de Marte e não abriu, causando a morte do paraquedista. A saga da família Ribeiro imaginava alguns destinos para a aeronave como por exemplo entregá-la à Prefeitura de Jaú, que construiria um memorial em homenagem ao ilustre filho da terra, exibi-la permanentemente no Aeroporto Internacional de Cumbica, pois até então existia planos de batizá-lo com o nome do aviador, etc.. Com a desativação do Museu de Aeronáutica no Ibirapuera em 2000, o Jahú foi transferido para o hangar da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no Aeroporto Campo de Marte, onde se constatou que seu estado de deterioração era tão grave que clamava por uma restauração completa. Esta foi levada avante graças a um convênio assinado entre a Fundação Santos Dumont, a Helipark, o Comando da Aeronáutica e a Aeronáutica Militar Italiana. Os trabalhos de restauração tiveram início em Abril de 2004 e envolveram uma equipe de doze profissionais. Os dois motores foram recuperados no Parque de Material Aeronáutico de São Paulo (PAMA-SP). O trabalho com a estrutura concentrou-se nas oficinas da Helipark, visando reconstituir a configuração exata da aeronave até os detalhes, desde o tipo de madeira e de pregos (de cobre e de latão), até ao tom de vermelho da pintura original. Terminado todo o processo de restauração a aeronave foi entregue, no dia 26 de Outubro de 2007, no Helicentro Helipark, em Carapicuíba. O avião foi então requerido pela cidade de Jaú, para exposição em museu aberto, mesmo após ganhar o direito frente ao museu proprietário. Mas a Fundação Santos Dumont cedeu o Jahú por comodato ao Museu TAM na cidade de São Carlos (SP), onde atualmente encontra-se exposto, ficando para a cidade natal do piloto apenas uma réplica. Em fevereiro de 2016, o Museu TAM Asas de um Sonho, que abriga o Jahú e outras aeronaves históricas, suspendeu as atividades e a aeronave ficará inacessível ao público por tempo indeterminado, até que sejam concluídas as negociações entre os envolvidos para a instalação de um novo museu no Campo de Marte na Capital. Segundo o professor da USP Fernando Catalano, doutor em engenharia aeronáutica, os motores do avião são os dois últimos remanescentes no mundo.
Por sua vez, o aviador após os momentos do feito histórico, permaneceu recluso em Jaú até o fim da vida e passava bastante tempo ao lado da família, narrando às crianças as histórias sobre suas aventuras. “Ele se reunia comigo e meus amiguinhos na escada, pagava sorvete ou pastel e ficávamos ouvindo extasiados enquanto ele falava sobre a travessia”, lembra o sobrinho Rubens.
Em 1947, com 47 anos, o comandante morreu na mesma fazenda em que nasceu. Não se casou e nem teve filhos. “Ele tinha amigos, era simples, próximo da família e se dava com todos”, conta Rubens. “Após a prisão, ele ficou muito triste, se isolou no campo”, recorda. Segundo os médicos disseram à família, as possíveis causas da morte foram um rompimento no baço ou as consequências da malária que contraiu na Africa.
Uma música feita para homenagear Barros e sua equipe, quando voltaram da travessia, previa que o Brasil os recolheria “ao seio da história”. Mas a realidade é que, exceto homenagens isoladas, como um mausoléu construído em frente à igreja matriz de Jaú, o comandante e seu feito não têm o devido reconhecimento dos brasileiros.
Uma das poucas iniciativas de perpetuar a conquista brasileira na memória popular é a lei estadual 9.933/1998, que transformou o 28 de abril no dia de “comemoração e divulgação da travessia do Oceano Atlântico sem escalas”.
Bibliografia:
Barros, José Ribeiro de – História heroica da aviação: reide “Gênova–Santo Amaro”, Museu da Aeronáutica de São Paulo Fundação Santos Dumont SP – 1927/1929
Machado, Gisele e Uliam, Leandro – O voo do João de Barros, Revista APARTES – #19 Câmara Municipal de SP – Abril 2016
Ferraresi, Rogério – O longo voo do Jahú, JÁ Diário Popular #69 – São Paulo Março 1998
Acervo do Museu de Jaú, Acervo de Júlio Cesar Poli, acervo público
UNESP de Araraquara, globo.tv, USP de Piracicaba e Primo Carbonari
Fonte: LAAMARALL
Bibliografia:
Barros, José Ribeiro de – História heroica da aviação: reide “Gênova–Santo Amaro”, Museu da Aeronáutica de São Paulo Fundação Santos Dumont SP – 1927/1929
Machado, Gisele e Uliam, Leandro – O voo do João de Barros, Revista APARTES – #19 Câmara Municipal de SP – Abril 2016
Ferraresi, Rogério – O longo voo do Jahú, JÁ Diário Popular #69 – São Paulo Março 1998
Acervo do Museu de Jaú, Acervo de Júlio Cesar Poli, acervo público
UNESP de Araraquara, globo.tv, USP de Piracicaba e Primo Carbonari
Fonte: LAAMARALL