Voltamos a publicar interessante texto de Helena Rebello sobre o extraordinário Roland Garros.
Boa leitura.
Bom domingo!
Histórias Incríveis: como Roland Garros virou lenda e consagração
Amigo de Santos Dumont, aviador francês, personagem da Primeira Guerra, jamais jogou tênis profissionalmente, mas emprestou nome a Grand Slam
Por Helena Rebello
Rio de Janeiro
A raquete e a bolinha de tênis nunca significaram mais do que um passatempo para o único homem a batizar um Grand Slam. Bem longe das quadras, Roland Garros fez fama internacional no comando de aeronaves em cenários até então inexplorados, muitos deles no Brasil. Décadas antes de Gustavo Kuerten sagrar-se tricampeão no torneio que leva o nome do aviador, foi o francês que encantou os brasileiros com exibições e feitos, como o primeiro voo entre São Paulo e Santos, ao lado do paulista Edu Chaves.
De amigo de Santos Dumont a personagem de histórias cinematográficas da Primeira Guerra Mundial, entenda como Roland Garros virou sinônimo de consagração na terra batida.
Roland Garros (de bigode e terno escuro): um dos pioneiros no espaço aéreo brasileiro (Foto: AFP) |
Nascido em Saint-Denis, Roland Garros conheceu o mineiro Santos Dumont no início do século 20 e ficou encantado pelas invenções do brasileiro. Praticante de esportes como ciclismo, rúgbi e tênis – nunca profissionalmente -, o jovem europeu, em 1909, resolveu se arriscar nos céus e comprou o Demoiselle, último invento de Dumont, para iniciar seu treinamento.
O leque de amigos brasileiros de Garros aumentou rapidamente e, de aluno, o francês logo passou a professor. Em 1911, foi um dos convidados pela “Queen Aeroplane Company Limited”, de Nova York, para fazer uma demonstração no Rio de Janeiro. Atraído por premiações oferecidas por empresários, o francês participou de diversas demonstrações nos céus da então capital do país e fazendo pequenos trajetos até a Região Serrana do estado. Em um deles, levou para voar pela primeira vez o campista Ricardo Kirk, que se tornaria o pai da aviação militar brasileira.
Roland Garros (direita) aprendeu a voar em um avião de Santos Dumont (esquerda) (Foto: Divulgação) |
No ano seguinte, ao lado de Edu Chaves, membro de uma tradicional família de cafeicultores paulistas, Garros colecionou feitos célebres. Em março de 1912, a dupla causou alvoroço ao voar entre São Paulo e Santos, cada um em seu próprio avião. Ainda no início da viagem o avião de Garros apresentou defeito e Chaves o ajudou. O retorno à capital paulista, no entanto, foi feito pelos dois na mesma aeronave.
- Na época não se imaginava que um dia existiria uma ligação aérea entre as duas cidades. Na verdade, não se pensava que o avião um dia tivesse papel integrador. O conceito de transporte aéreo surgiu apenas anos mais tarde, quando no início da década de 1920 se percebeu a vantagem do avião como transporte de correios - explicou Edmundo Ubiratan, jornalista especializado em aviação.
A edição de 9 de março do jornal “Correio da Manhã” descreveu parte do episódio, lembrando também o prêmio de 30 mil réis oferecido pelo governo do estado, a ser entregue ao primeiro que realizasse o feito.
- Desde 7 horas da manhã, em Santos, enorme multidão, calculada em mais de duas mil pessoas, a pé, em automóveis e de carro, espera na Praia de José Alenino. (...) O aviador Roland Garros chegou às 9 1/2 horas, tomou a direcção do mar, descreveu duas voltas e aproou para a praia, onde aterrou, sendo delirantemente aclamado pelo povo. Quando Garros aterrava, Eduardo Chaves voou, tomando a direcção da bahia, contornou Montserrat, descreveu várias curvas, voltou à praia, ao ponto de partida, depois de permanecer no ar por espaço de 44 minutos. No parque, Garros e Chaves abraçaram-se commovidos.
A crescente popularidade fez com que Garros prestasse serviços comerciais até para o Exército Brasileiro, fazendo o transporte de oficiais. As ofertas de diferentes patrocinadores fizeram com que o aviador também explorasse os céus argentinos, e o francês também acumulou viagens para Buenos Aires e cidades da região. A aventura na América do Sul aguçou ainda mais o espírito desbravador de Garros, que voltou ao Velho Continente para marcar de vez seu nome na história.
No dia 23 de setembro de 1913, o já experiente piloto partiu de Fréjus, no Sul da França, rumo a Bizerte, na Tunísia. Ao completar o percurso, após 7h53m de voo, tornou-se o único até então a atravessar o Mar Mediterrâneo sem fazer escalas. Dizem as fontes históricas que, ao aterrissar, ele tinha apenas mais cinco litros de combustível no tanque.
Garros vira personagem da 1ª Guerra Mundial
Uma das passagens de Garros (dir.) pelo Brasil a convite de empresários (Foto: Reprodução) |
O retorno ao Velho Continente e a eclosão da Primeira Guerra Mundial marcaram uma nova fase na carreira de Garros nos ares. O francês transformou-se em piloto de guerra e teve atuação importante no desenvolvimento dos caças. As cinco vitórias que obteve em batalhas lhe renderam o título de “Ás” da aviação.
Neste período, o aviador colecionou histórias curiosas. Em uma delas, reproduzida na edição de 15 de novembro de 1914 do jornal “O Paiz”, o francês protagoniza uma cena digna de cinema.
- O "Daily Chronicle" publica um telegramma do seu correspondente no theatro de guerra informando que nos arredores de Amiens as tropas alliadas, vendo aproximar-se um aeroplano typo Taube, fizeram fogo sobre o mesmo. Immediatamente o apparelho desceu, sendo rodeado pelos soldados, que encontraram dentro delle o celebre aviador Roland Garros, que se havia apoderado do referido apparelho depois de ter matado o piloto alemão que o dirigia.
Em outras oportunidades, porém, Garros não teve a mesma sorte. Em 1914 foi apanhado pela primeira vez como prisioneiro e teve que trabalhar em um campo de concentração em Zossen, na Alemanha. Esta prisão trouxe grande prejuízo para a Tríplice Entente, lado que a França defendia no confronto. Isto porque Garros havia desenvolvido uma tecnologia de ataque durante o voo, que foi aperfeiçoada por Anthony Fokker, engenheiro aeronáutico holandês a serviço dos alemães.
- Nas aeronaves primitivas da 1ª Guerra Mundial, o tiro contra outros aviões tinha que ser realizado para a retaguarda, pelo observador, o que dificultava muito a precisão. Garros desenvolveu um sistema no qual as metralhadoras do avião, posicionadas diante do piloto, podiam ser diaparadas através da hélice, sem destruí-la; para isso, colocou um revertimento de aço na hélice de seu avião que, quando atingida, as balas desviavam. Garros foi abatido pelos alemães e não teve tempo de destruir seu avião. Anthony Fokker examinou seu aparelho e o aperfeiçoou, criando a metralhadora sincronizada, cujos tiros eram interrompidos quando passava a hélice diante da trajetória. Tal sistema trouxe grande vantagem aos alemães e tornou-se o padrão até o final do conflito. Apesar de aperfeiçoado por Fokker, teve início com Garros - explicou historiador militar e professor da Universidade do Sul de Santa Catarina Carlos Roberto Carvalho Daróz.
Nas páginas dos periódicos brasileiros, Garros voltou a ganhar espaço em fevereiro de 1918 com a notícia de sua fuga para a Holanda. Em outubro do mesmo ano, apenas três semanas antes do fim do conflito global, o aviador foi capturado nos arredores de Koblenz e morto por uma esquadrilha alemã.
No destaque oval das fotos, Garros é fotografado como prisioneiro dos alemães na 1ª Guerra Mundial(Reprodução) |
Homenagem póstuma dá nome do aviador a torneio
Os Mosqueteiros: época áurea do tênis francês (Foto: Divulgação/Site Oficial Roland Garros) |
Sem nunca ter jogado tênis profissionalmente, Roland Garros passou a dar nome ao maior complexo do esporte na França após um acordo firmado entre o clube Stade Français, do qual foi sócio, e a Federação nacional da modalidade (FFT). Na década de 1920, o país vivia um momento áureo no tênis. No feminino, Suzanne Lenglen colecionava títulos de simples e de duplas nos principais torneios mundiais. Entre os homens, o quarteto formado por René Lacoste, Henri Cochet, Jean Borotra e Jacques Brugnon sagrou-se, em 1927, campeão da Copa Davis.
Para a defesa do título em casa, no ano seguinte, a Federação Francesa precisou se mobilizar para garantir uma estrutura compatível com a importância do evento. Até então, as principais competições sediadas em Paris tinham jogos realizados simultaneamente em dois locais: o Racing Clube e o Stade Français, que cedeu três hectares de um terreno no bairro de Porte d’Auteiul. A única exigência era que a construção fosse batizada em homenagem a um dos associados. Garros, herói de guerra, foi o agraciado. A prefeitura deu o suporte financeiro e, no ano seguinte, os franceses, conhecidos então como "Os Mosqueteiros", mantiveram a coroa.
Desde então, o complexo passou por diversas reformas. O estádio principal, que mais tarde seria batizado de Philippe Chatrier, foi construído com capacidade para 8 mil pessoas e hoje pode receber mais de 15 mil torcedores. Em 1984 foram erguidas mais quadras externas, além da “Praça dos Mosqueteiros”, com estátuas de Borotra, Lacoste, Cochet e Brugnon. A quadra que homenageia Suzanne Lenglen foi construída dez anos mais tarde e comporta mais de 10 mil espectadores. Ao todo, 18 quadras compõem o complexo.
O complexo de Roland Garros: maquete mostra o planejamento do local para 2018 (Foto: Divulgação) |
Em 2018, o Grand Slam do saibro será reinaugurado com nova roupagem. Segundo determinação da FFT, a quadra central contará com teto retrátil para receber partidas independentemente das condições climáticas e de iluminação, será mais confortável e terá infraestrutura mais moderna e sustentável. Um prédio será construído para abrigar a organização do torneio, e também serão feitas obras para o fluxo de pessoas, principalmente na entrada da Avenue Porte d’Auteuil, dentre outras melhorias. O custo estimado da reforma é de 340 milhões de euros (cerca de R$ 900 milhões). Deste montante, 95% serão bancados pela própria FTT através de recursos próprios e de um empréstimo. A Prefeitura de Paris deve contribuir com 20 milhões de euros.
Por Helena Rebello
Rio de Janeiro
Fonte: globo.com